Neste exato momento em que se discute a crise humanitária do povo Yanomami, há cerca de 4 mil procedimentos minerários incidentes em 216 terras indígenas e 542 obras de aproveitamento hidrelétrico que afetam 208 de seus territórios em andamento perante os órgãos da burocracia estatal, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA).
A Constituição da República reclama no seu art. 231, § 6º a prévia regulação da matéria por lei complementar, inclusive para a conceituação das hipóteses de relevante interesse público da União. Nunca é demais lembrar que as terras indígenas, como enuncia art. 20, XI da Constituição, constituem propriedade imobiliária da União, cabendo aos indígenas o pleno exercício da sua posse tradicional.
Além da edição de uma lei complementar, o art. 231 da Constituição, em seu § 3º, exige a edição de lei ordinária para disciplinar a forma como deverão ser previamente ouvidas as comunidades afetadas por essas atividades, bem como a participação nos seus resultados. Por fim, editadas estas leis, a Carta Magna reclama ainda a coletada de autorização específica e prévia do Congresso Nacional para a viabilização da mineração em seus territórios.
A questão não é nova. O direito à posse permanente das terras tradicionais vem sendo assegurado desde o século XVII no ordenamento jurídico brasileiro, através de alvarás, cartas régias e provisões expedidas pelos monarcas portugueses. Coerente com seus antecedentes históricos, a Constituição de 1988 apenas explicitou o direito à posse tradicional, uma norma jurídica primária e originária e, neste sentido, preexistente ao próprio Estado de Direito. Por isto a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 reconheceu aos indígenas não só a posse dos territórios tradicionalmente por eles ocupados, como também o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
É importante ressaltar que a Constituição reconhece a posse indígena sem a confundir ou a subordinar ao regramento da posse civil de Direito Privado: a posse indígena é coletiva e decorre da tradicionalidade. Nessa perspectiva, a Constituição aproximou o conceito de terra indígena à noção de identidade coletiva, de modo que a tradicionalidade observou vetores antropológicos e não cronológicos, isto é, os usos, costumes e tradições de cada povo e não a simples comprovação do domínio contínuo.
Porque são bens da União, ao poder central compete privativamente legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia (art. 22, inciso XII). O art. 23 estabelece a competência federal para registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em territórios indígenas (inciso XI). A Agência Nacional de Mineração, sucessora do DNPM, criada pela Lei n. 13.575 de 26 de dezembro de 2017, tem por escopo implementar a política nacional para as atividades econômicas de mineração (art. 2º, inciso I). Incumbe-lhe estabelecer os requisitos técnicos, jurídicos, financeiros e econômicos a serem atendidos pelos interessados na obtenção de títulos minerários (inciso VI) e fomentar a concorrência entre os agentes econômicos (inciso XXIV). Essa atividade inclui monitorar e acompanhar as práticas de mercado do setor de mineração brasileiro e cooperar com os órgãos de defesa da concorrência.
Esta competência não se estende às atividades minerárias sobre os territórios tradicionais. Tivesse o Constituinte de 1988 a intenção de igualar as atividades produtivas desenvolvidas pelos indígenas em seus territórios às atividades minerárias em geral, não se teria detido em suas peculiaridades culturais, isto é, seus usos, costumes e tradições, ao disciplinar a matéria. O Constituinte, muito ao contrário, reservou especificamente o Capítulo V ao regramento da questão indígena, inserindo-o no Título VIII que trata da Ordem Social. Optou por reconhecer em suas atividades algo distinto e incompatível com as atividades econômicas em geral. Esta distinção alcança a gestão de seus territórios que não guarda, no corpo da Constituição, identidade com a política minerária dos art. 174 e seguintes do Capítulo III da Ordem Econômica.
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar os Embargos de Declaração no Caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388), já fizera a distinção entre mineração, enquanto atividade econômica, e a faiscação, representando esta a forma de extrativismo realizada pelos indígenas:
No acórdão embargado, não se discutiu à exaustão o regime legal e regulamentar aplicável à garimpagem e à faiscação. Nem seria próprio fazê-lo. Limitando-se à interpretação do sistema constitucional, o Tribunal definiu apenas que o usufruto dos indígenas não lhes confere o direito de explorar recursos minerais (bens públicos federais) sem autorização da União, nos termos de lei específica (CF/88, arts. 176, § 1º, e 231, § 3º). De toda forma, não se pode confundir a mineração, como atividade econômica, com aquelas formas tradicionais de extrativismo, praticadas imemorialmente, nas quais a coleta constitui uma expressão cultural ou um elemento do modo de vida de determinadas comunidades indígenas. No primeiro caso, não há como afastarem-se as exigências previstas nos arts. 176, § 1º, e 231, § 3º, da Constituição.
São três, por conseguinte, as fases que precederiam a excepcional autorização de atividade minerária em terras indígenas, nos termos da Constituição: a edição de lei complementar, conceituando o interesse relevante da União; a edição de lei ordinária, para a oitiva prévia das comunidades e a participação dos indígenas no resultado da lavra e, por fim; a autorização específica, em cada caso, do Congresso Nacional. Não é necessário grande esforço hermenêutico para constatar que a inexistência da lei complementar reclamada pelo § 6º do art. 231 da Constituição prejudicaria a regulamentação ordinária dos procedimentos elencados no § 3º e, por igual fundamento, a autorização de mineração em terras indígenas pelo Congresso Nacional. Há uma hierarquia das normas jurídicas que deve ser respeitada nos termos da Constituição e das leis do País e da própria Ciência do Direito.
Não obstante, mesmo que já existisse essa lei complementar melhor sorte não socorreria à pretensão de regular a atividade econômica minerária em territórios indígenas. É certo que o relevante interesse da União é um conceito difuso e multívoco, a comportar um amplo espectro exegético que, não obstante, encontra seus limites interpretativos no próprio corpo da Constituição. E, como já disse o Supremo Tribunal Federal, as atividades produtivas indígenas não se confundem com as atividades econômicas minerais em geral. Da mesma forma, o interesse relevante da União em extrair minérios em terras indígenas, caso configurado, não se confundiria com a mineração privada, esta regulada no Título da Ordem Econômica da Constituição.
Tudo isto é dito no esforço de demonstrar que, nos termos do § 6º do art. 231, mesmo que fosses editada uma lei complementar para permitir a excepcional exploração de minérios em terras indígenas pelo próprio Estado, em questões estratégicas, a pretensão à regulação da atividade econômica minerária é, em qualquer caso, uma afronta à Constituição, configurando um impossível jurídico. Não há dúvida de que minerar no Brasil é algo lícito e incumbe ao Poder Executivo da União regular esta atividade. Ocorre que a mineração privada, regulada pelo Constituinte na Ordem Econômica, não se estende à mineração estratégica em territórios indígenas, segundo o relevante interesse do Poder Público, a ser disciplinado em Lei Complementar. Estes dois conceitos não se confundem, por fim, com as atividades produtivas indígenas, inclusive a faiscação, nos termos do precedente do STF.
O debate da crise humanitária que assola os Yanomami, em que há fortes indícios de genocídio em decorrência da política indigenista adotada pelo Estado brasileiro nos últimos quatro anos, tolerante com o garimpo ilegal, tem por pano de fundo a exploração das riquezas naturais de seus territórios que, não obstante, nos termos da Constituição, são por princípio inalienáveis. Um debate que, como vimos, parte da falácia de igualar atividades minerárias absolutamente distintas no corpo da Constituição: a mineração privada em geral, a excepcional mineração estratégica, cujo pressuposto é o relevante interesse do Poder Público, e as próprias atividades produtivas indígenas, decorrentes de suas tradições.
Dito tudo isto, há uma pergunta que se apresenta e que não quer se calar: por que os procedimentos em curso há anos nos escaninhos da burocracia federal com a pretensão de minerar privadamente em territórios indígenas não são sumariamente arquivados? O Estado deve promover a segurança jurídica e não a disseminação de ambiguidades.
A conferir.
– Antônio Carlos Bigonha – É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).