Durante os dias de folga na duas primeiras semanas de janeiro, foi meu companheiro O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura. Neste romance, o escritor cubano faz um paralelo entre as circunstâncias do assassinato de León Trotski, a mando de Stálin, e a situação em Cuba no início dos anos 1970. Para concluir que o pendor pelo totalitarismo, pela repressão desmedida, acabou por colaborar fortemente para que os sonhos socialistas desmoronassem, seja na União Soviética seja na ilha caribenha. No silêncio do refúgio escolhido para esses dias de folga, foi nascendo uma reflexão: talvez os pendores totalitaristas nas redes sociais estejam agora colaborando de forma parecida para que desmoronem, em vários pontos do planeta, os sonhos de democracia.
Padura mostra em seu livro que em determinado momento parecia ser mais importante em Cuba vigiar o comprimento dos cortes de cabelo, se as calças estavam ou não demasiadamente justas ou se as preferências sexuais de cada um eram condizentes com o “ideal revolucionário”. Na União Soviética da ascensão do stalinismo, a atenção se voltou aos inimigos internos. O foco do esforço era apontar o dedo, execrar, deportar, exilar, fuzilar antigos companheiros que levantassem um senão sequer aos planos e ideias do governo. A começar pelo próprio Trotski, camarada de primeira hora, amigo de Lênin, criador do Exército Vermelho. O mesmo tipo de sufocamento que Padura percebe em Cuba, um pouco depois de uma década de revolução.
Quando o socialismo sofre os seus abalos, nos dois países não se encontrou talvez o apoio da população para alguma resistência maior. Porque, em vez de se buscar forjar a sociedade pelo convencimento, o que se fez foi mantê-la silenciada pelo medo, pela repressão, pelo sufocamento. Forjou-se uma sociedade cínica ou acovardada. A Rússia, terminada a União Soviética, um dos países mais corruptos do mundo. Cuba, a ilha, com as rachaduras literais da sua ruína impressos nos casarões e prédios de La Habana.
No “admirável mundo novo” das redes sociais, parece que o pendor pelo totalitarismo caminha para levar ao mesmo estado de ruína dos sonhos. Cada grupo seja no Facebook, no whatsapp ou qualquer outra rede social segue a mesma linha limitadora que Padura descreve. A qualquer senão, a qualquer divergência, produz-se o mesmo caminho, que começa na perseguição, passa pela execração, pelo exílio e termina no fuzilamento. Seja o grupo de esquerda ou de direita, ninguém que minimamente destoe dos ideais daquele grupo é bem-vindo.
A coisa extrapola para além de cada uma dessas ilhas e republiquetas virtuais quando seus integrantes elegem inimigos externos e se unem para destruí-los. Quando possível, maximizando fatos e defeitos verdadeiros. Quando não encontrados esses fatos, criando mesmo, inventando, falsidades.
Esse mundo totalitário facilita o triunfo dos extremos. É um mundo no qual pensamentos mais sofisticados não encontram abrigo. É um mundo que precisa caber na meia dúzia, se tanto, de expressões de uma palavra de ordem. Um mundo sem nuances. Preto ou branco. Não é por acaso que extremistas ensaiam seus voos não somente por aqui, mas em boa parte do mundo. E muitas vezes acabam vencedores.
A contribuição para a cristalização desse estado de coisas vem preocupando os criadores desses mundos virtuais. As mudanças de algoritmo definidas pelo Facebook no final do ano parecem ir na linha da mesma preocupação (há mais detalhes por aqui). O Face pretende reduzir a presença na linha do tempo de cada um de postagens noticiosas, com medo da proliferação de fake news e, especialmente, da manutenção do espaço de ódio e divisão política que a rede social virou.
Não deixa de ser uma forma estranha de reagir ao fenômeno: restringir o acesso às informações para evitar que as informações sejam falseadas ou distorcidas. Antes de mandar assassinar Trotski, Stálin já tratava de retocar fotografias e notícias de jornal de modo a removê-lo da história da União Soviética. O Homem que Amava os Cachorros é leitura mais que recomendada…