O historiador chileno Gabriel Salazar, estudioso, há décadas, dos protestos em seu país, afirmou, não faz muito tempo, que “ter direitos e não ter poder não serve para nada”. Ele é um entusiasta das assembleias populares que lá vão brotando pelos quatro cantos e se dedicam a pensar um projeto de Constituição para o Chile.
Algo semelhante ocorreu na Islândia, após a grave crise financeira de 2008. A população chilena se mobiliza, de baixo para cima, para repensar o país como um todo.
Aonde isso vai chegar é impossível de se prever. O “status quo” resiste: convoca para abril de 2020 um plebiscito, no qual o povo optaria por delegar a elaboração de uma nova constituição a uma “convenção constitucional” ou a uma “comissão mista constitucional”, o que nos remete à fracassada comissão Afonso Arinos, instituída por Sarney, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 26, de 1985 – pela qual se outorgaram poderes constituintes ao Congresso Nacional que seria eleito em 1986.
Detalhe: na tal convenção constitucional, apenas metade dos deputados seria eleita para o fim específico de elaborar a nova constituição; a outra metade dos “constituintes” seria composta pelos atuais parlamentares, repetindo-se o que se passou no Brasil. Aqui, recordemo-nos, os senadores eleitos em 1982 (ainda no regime militar) e na metade de seus mandatos de oito anos, em 1987, puderam participar plenamente da “Assembleia Nacional Constituinte”.
E por falar em Brasil, vivenciamos por estas bandas, nos dias de hoje, a erosão dos direitos individuais e sociais, “consagrados” no texto constitucional, sem que os lesados tenham poder para a isso se contrapor. O povo a tudo assiste anestesiado. A ordem jurídica instituída em 1988 esvai-se.
Na verdade, se notarmos a quantidade absurda de normas constitucionais que ainda dependem de regulação ordinária ou complementar para que tenham eficácia; se atentarmos para o enorme número de emendas constitucionais, que já tornaram o texto original, nas palavras do Ministro Marco Aurélio, um “hebdomadário”, podemos verificar que a Constituição nasceu interditada e o seu desmonte começou imediatamente após sua promulgação.
Em 6 de outubro de 1988, não é demasiado relembrar, foi apresentada, a despeito da vedação por cláusula pétrea, a primeira proposta de emenda constitucional, de autoria do então Deputado Amaral Netto, pela qual se propunha a realização de um plebiscito, para que o povo decidisse sobre a adoção da pena de morte, rechaçada pela Constituição que entrara em vigor no dia anterior. No dia anterior!
O curioso é que as propostas para a realização de um referendo, a fim de que os cidadãos dissessem se aprovavam ou não a nova Constituição como um todo, haviam sido, anteriormente, rejeitadas, inclusive pelos defensores da pena de morte.
Nessa toada, até mesmo as instituições políticas vão sendo questionadas por milícias digitais ou por milicianos de carne e osso. Os partidos políticos são achincalhados; cresce o número de pedidos de “impeachment” contra magistrados da Suprema Corte. E até mesmo generais são alvos de difamação e injúria.
A Constituição vai perdendo, a passos largos − exatamente por conta da paralisia dos cidadãos por ela, teoricamente, protegidos − a sua “força normativa”. E como não existe vácuo na política, seu lugar tende a ser ocupado por um ordenamento tendencialmente totalitário e retrógrado. Uma vez finada a “democracia”, poderemos ter de nos sujeitar à “demarquia”, um regime político autoritário, proposto por Friedrich Hayek, no qual a democracia de fachada dá guarida ao ultraliberalismo econômico.
Contra isso se insurgem os chilenos.
É tarefa para ontem das forças democráticas, que acreditam na liberdade, nos ideais republicanos e na justiça social resistir e refletir em conjunto sobre o que deu errado nesses 130 anos de República e sobre o que desandou nos pouco mais de 30 anos de “Constituição Cidadã”. “O que foi feito é preciso conhecer para melhor progredir”, diz a canção.
Mas esse processo, com vistas a revisar os desarranjos, só pode apontar para a superação de equívocos se for capaz de incorporar grandes massas populares à discussão, tornando-as, efetivamente, sujeitos políticos, com condições de pensar e decidir por si mesmos. Sujeitos que não sejam simplesmente caudatários de líderes populistas carismáticos; que repudiem a tradicional cultura política caudilhista.
Que, enfim, como apregoava Hannah Arendt, deixem de ser parte da espécie “animal laborans”, cujas experiências e atividades seguem as de um rebanho, para se incorporarem à espécie do “homo faber”, capacitados a uma vida pública que seja de construção própria.
Esse é o desafio que está posto para hoje e para os dias que virão. Do contrário, a barbárie poderá prevalecer. Já podemos escutar os seus sinais: às 17h37 de um sábado, no centro de Niterói, um homem saca um revólver e atira duas vezes, matando uma moradora de rua que lhe pedia R$1,00 de esmola. Um real.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG