Em 3 de julho de 2019, menos de um mês após os estarrecedores diálogos escancarando a devassidão de alguns procuradores da Lava Jato e Sérgio Moro, o ex-juiz sentou-se a poucos metros do deputado Glauber Braga, frente a frente, na Comissão de Constituição e Justiça para responder o irrespondível e protagonizar uma das cenas mais embaraçosas do Parlamento. Mostrava-se ao país o aliciamento do juiz, que teria desonrado a toga para acumular, indevidamente, os postos de investigador e acusador no caso do ex-presidente Lula, que foi condenado sem provas e proscrito da eleição presidencial a partir de uma feitiçaria institucional. Um sincretismo profano. O quebranto jurídico de Moro contra Lula, notável pela precariedade, foi decisivo para abrir os caminhos de Jair Bolsonaro e alimentar as mandingas contra o Estado de Direito desde então. Pelos sacrifícios ofertados, Moro foi premiado com o cargo de Ministro da Justiça, onde ficou por improdutivos 479 dias. O mau olhado compensou.
O depoimento à Câmara, o segundo no Congresso sobre o escândalo da promiscuidade entre o juiz e o MP revelados pelo “The Intercept”, já passava de 8 horas de duração, quando o deputado Braga fuzilou Moro sem tergiversar: “A população brasileira não vai aceitar como fato consumado um juiz ladrão e corrompido que ganhou uma recompensa para fazer com que a democracia brasileira fosse atingida. É o que o senhor é. Um juiz que se corrompeu e, apesar dos gritos, um juiz ladrão”. Carregado, Moro surpreendeu e inaugurou um método revelador do caráter dele, a fuga. A sessão foi encerrada debaixo de gritos de “ladrão” e “fujão”. Moro, sem a blindagem da toga, exibiu, pela primeira vez em público, o temperamento temeroso e inseguro que, nem de longe, lembrava a valentia de feitor batendo os tambores nos terreiros sombrios da lava jato.
O falecido ministro Gustavo Bebianno confidenciou em uma entrevista que Paulo Guedes lhe contou ter conversado com Moro “cinco ou seis vezes” antes do segundo turno das eleições sobre a possibilidade de assumir o Ministério da Justiça. Moro confirmou a sondagem antes do segundo turno, mas ressaltou que recebeu o convite formal, do mesmo Paulo Guedes, apenas após o resultado do segundo turno.
O vice-presidente Hamilton Mourão também confirmou as conversas antes do segundo turno. A dupla ratificação reforça a índole dissimulada de Moro, o descompromisso com a verdade e revela o despacho macabro que redundou no retrocesso civilizatório brasileiro. Moro suspendeu o sigilo da delação de Antônio Palocci, cujo alvo era o PT, a 6 dias do primeiro turno da eleição. Entrou de corpo e espírito na sucessão presidencial como babalaô bolsonarista.
Meses depois, Moro foi repelido pelos Exus que evocou: golpistas, gatunos, genocidas e milicianos. Foi usado, mastigado e escorraçado depois do olho grande pelo controle da guarda pretoriana, a PF. No descarrego, Moro reafirmou ser adepto da vindita e cuspiu na oferenda onde antes se refestelou. Imputou ao capitão um delito não comprovado. O alegado controle político da PF, segundo a memória imprecisa de Moro, poderia ser comprovado no perturbador barracão ministerial de 22 de abril. O mau olhado de Moro embaralhou as coisas.
Há crimes de toda ordem de outros ministros no malsinado encontro, menos palavras do capitão que confirmassem a incriminação. O ex-juiz ratificou ser inepto com provas e desidioso. Fazer vistas grossas aos crimes por conveniência é outro atributo dele. “Absolveu” Onyx Lorenzoni pelo delito de caixa 2, calou no caso de Marielle Franco, desprezou o laranjal do PSL e capitulou diante do peculato de Flávio Bolsonaro durante toda gestão no ministério. Moro, definitivamente, é uma entidade da bruxaria e da conveniência.
A conveniência histórica se repete agora. Sérgio Moro é mais uma vez recompensado. Se tornou sócio bem remunerado de uma empresa e se beneficiará de suas próprias decisões. Ele atuará na recuperação judicial de construtoras que ele próprio arruinou no passado, como a Odebrecht. A quebradeira gerou uma trágica onda de desemprego na construção civil para os mortais. Mas Moro é o orixá dos corruptores, vivendo de gordas oferendas e dos sacrifícios de outrora, centenas de CPFs e CNPJs. Dessa forma embriaga-se, de novo, na quimbanda diabólica que diz combater. Já na primeira encomenda isentou um magnata israelense investigado por corrupção que ele teria mandado prender em tempos passados. Na nova fuga, teoricamente, desencarna das ambições presidenciais em nome das quais transgrediu. Apenas no caso da gravação de Dilma Roussef confessou o delito, ainda impune, alegando “interesse público”. Moro é novamente recompensado. Agora financeiramente.
A tentativa de judicialização da política conduzida por Moro, assim como na Itália, foi um flagelo. Desde que conspurcou a toga, Moro perdeu um precioso patuá. O calvário é extenso. Sofreu duras derrotas em série. A perda da lava jato na gerência sobre R$ 2,5 bi de recursos públicos da Petrobrás; derrota no COAF; aprovação da lei de abuso de autoridade; várias sentenças reformadas por erros jurídicos; a nomeação do atual PGR, 3 tentativas frustradas de instaurar CPI contra STF, a prisão após 2 instância, o pacote anticrime com itens fascistas, a exclusão da delação de Antônio Palocci contra Lula e a cassação da “Moro de saias”, Selma Arruda, ex-juíza e senadora, flagrada no Caixa 2 e abuso do poder econômico, são os casos mais emblemáticos. Na última semana a PGR barrou outro trabalho encomendado. Uma fundação ligada à lava jato iria receber R$ 270 milhões do acordo de leniência da JBS.
Moro ganhou notoriedade ao incorporar o papel de teórico e pauteiro da Lava Jato. Provas entregues ao “The Intercept”, mostram o juiz sugerindo inversão de fases da operação, escalando procuradores, ditando notas ao MP para desacreditar o “showzinho” da defesa, blindando políticos de sua preferência e indicando fontes para encorpar a acusação. Na toga de verdugo, vazou criminosamente o áudio da Presidente, grampeou advogados e suspendeu o sigilo da delação de Antônio Palocci em plena eleição, além agir para evitar a soltura de Lula. Moro encarnou as figuras de acusador e juiz, corrompendo ambos.
Desequilibrou deliberadamente a balança da Justiça embaralhando militância política e a militância jurídica. Absolutista como Luís XIV, operou a prevalência das pessoas sobre as leis, e não o contrário.
Em 2004, antes da celebridade obtida com as magias sombrias da lava jato, Sérgio Moro teorizou tudo por escrito, prolatando uma doutrina tribal de transgressão. O libelo incensando a operação “Mãos Limpas” e o promotor Antônio Di Pietro da Itália, tornou-se o vade mecum dos lavajatistas. Eis a súmula do memorial fascista:
1) presunção de inocência pode ser relativizada para encarcerar suspeitos indefinidamente; 2) prender para delatar; 3) deslegitimar a classe política e 4) publicidade opressiva para constranger investigados.
O código personalíssimo do magistrado, recepcionado literalmente pela lava jato, foi nefasto para história. Di Pietro encerrou a vida pública com as mãos sujas e sua popularidade desabou do céu ao inferno. O feitiço virou contra o feiticeiro. Moro está a caminho de repetir o mesmo calvário da desmoralização depois de fraudar, não uma eleição, mas a própria história brasileira.
A conduta de Sérgio Moro como magistrado, a exemplo dos tribunais do Santo Ofício, bagunçou a macumba. Como político, tornou-se desafeto do ovo da serpente que ajudou a chocar. Tentou se reposicionar como iluminista e vítima da serpente que enrodilhou, mas o legado dele remete ao terror francês, onde processos precários levaram às degolas. Iniciado com a realeza absolutista – o rei Luiz XVI e a rainha Maria Antonieta -, terminou no pescoço do seu correspondente francês, ex-ministro da Justiça, George-Jacques Danton e Maximilien de Robespierre, líder dos Jacobinos e ideólogo do terrorismo de Estado.
O transe do sacerdote vaidoso, justiceiro e transgressor ameaçou a estabilidade democrática e afrontou Estado de Direito diante do silêncio permissivo do STF. Moro desceu ao submundo muito mais rápido que seu colega italiano, Antonio Di Pietro que, além de ministro, conquistou mandatos até ser pilhado em malversação de dinheiro público. A expiação dele foi tardia: “Fiz uma política sobre o medo e paguei as consequências. O medo das algemas, o medo do, digamos assim, ‘somos todos criminosos’, o medo no qual, quem não pensa como eu, seja um delinquente. Fiz o inquérito Mãos Limpas, e com ele se destruiu tudo que era a dita primeira República: o mau, e havia muito com a corrupção, é que nasceram os chamados partidos personalistas”, penitenciou-se Di Pietro em 2019.
Como juiz, Sérgio Moro ainda será julgado por seus excessos, a exemplo da parcialidade no caso Lula. Como ministro foi um fiasco, como político um encosto peçonhento para a economia e o emprego. Como pessoa deverá amargar seus dias atormentado sobre o sangue esguichado dos sacrifícios de sua guilhotina facciosa, quando incorporou o incorruptível Robespierre e tocou o terror no terreiro da 13 Vara de Curitiba. Ao proteger corruptores tragados pela agonizante lava jato, Moro incorpora a Pomba Gira. A história insiste em lembrar que o crime não compensa. O deputado Braga, que o chamou de “ladrão”, sepultou o pedido de cassação 3 meses depois. Sérgio Moro é uma alma penada, vagando na própria encruzilhada.