Proponho deixarmos de lado paixões políticas e aversões pessoais, para examinarmos, pelo viés constitucional, a cassação de mandato do deputado federal Deltan Dallagnol. Ao fazê-lo, porém, será necessário consultar a história das Constituições anteriores e o texto da atual Lei Fundamental.
Determinava o Art. 10 da Carta Imperial de 1824 que “Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial”. Os membros da Câmara dos Deputados e do Senado eram invioláveis “pelas opiniões que proferirem no exercício das suas funções” e se pronunciados o Juiz suspenderia “todo ulterior procedimento, dará conta a sua respectiva Câmara, a qual decidirá se o processo deve continuar, e o membro ser ou não suspenso do exercício das suas funções”.
Exceção feita à Carta Constitucional de 10/11/1937, outorgada pelo ditador Getúlio Vargas, todas as demais Constituições observaram a mesma linha, adotaram a divisão dos poderes e a proteção ao mandato. Destarte, segundo o disposto pelo Art. 2º da atual Lei Fundamental, “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Na topografia do Estatuto Orgânico Nacional – como a denominava Rui Barbosa – o Legislativo precede o Executivo que, por sua vez, precede o Judiciário. Eleitos pela vontade do povo, contudo, apenas os integrantes do Poder Legislativo e do Executivo. O Judiciário é composto por magistrados concursados e, em certos casos, indicados pelo presidente da República e referendados pelo Senado.
Deltan Dallagnol não foi nomeado, tampouco concursado. Concorreu em igualdade de condições com centenas de candidatos, e se elegeu pelo sistema proporcional, graças a 344.917 votos diretos e secretos, que lhe conferiram o primeiro lugar entre os representantes do povo paranaense na Câmara dos Deputados. Foi diplomado pelo Tribunal Regional Eleitoral e tomou posse no dia 1º de fevereiro.
Como todo cidadão, Deltan Dallagnol está amparado pelo Título II da Constituição, onde estão gravados os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Encontra-se, portanto, sob a proteção do Art. 5º, com o extenso rol de incisos que lhe dão vida. Destarte, não será privado da liberdade e dos seus bens (como o mandato legislativo), sem o devido processo legal; se houver acusação válida, o processo correrá pelo Supremo Tribunal Federal; ser-lhe-ão assegurados o contraditório e o amplo direito de defesa; serão rejeitadas provas ilícitas; gozará de presunção de inocência até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (incisos LIV, LV, LVI, LVII).
Conforme o disposto no Art. 53, “Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Escrito com o sentido de qualquer, quaisquer tem alcance impessoal e indeterminado. O parágrafo primeiro do referido artigo ordena, com transparência cristalina, que desde a expedição do diploma – isto é, mesmo antes de empossados – deputados e senadores “serão submetidos a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal”.
Como está no Preâmbulo da Constituição, o Estado é democrático. A essência da democracia consiste na livre manifestação do pensamento, no voto direto, livre e secreto, na imunidade dos parlamentares, na independência e harmonia entre os Três Poderes. O Tribunal Superior Eleitoral integra o Poder Judiciário. São irrecorríveis as suas sentenças, “salvo as que contrariarem esta Constituição”, diz o Art. 121.
À toda evidência, o voto do ministro Benedito Gonçalves, acompanhado silenciosamente pelos demais ministros da Corte, violou a Lei Superior. Da maneira como foi lavrado, ignorou o devido processo legal, impediu a promoção de provas, considerou o acusado culpado, e o puniu com a perda do mandato. Não lhe assegurou o direito de defesa, como não esperou pelo trânsito em julgado da decisão condenatória. Mais despótico, apenas o antigo Tribunal do Santo Ofício, onde suspeitos de heresia eram torturados e mortos na fogueira.
Escreveu o Pe. Antônio Vieira que há juízes que julgam com o entendimento, e juízes que julgam com a vontade. Com o entendimento procedem os juízes que investigam os fatos, concedem ao acusado a oportunidade da defesa, conhecem e respeitam a Constituição e a lei. Com a vontade julgam os que decidem com ódio.
Deltan Dallagnol foi julgado por adivinhação. Aguardemos a reação da Câmara dos Deputados, diante de tanta violência.
– Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.