Meia-irmã do Decreto-lei, a Medida Provisória traz nas veias o sangue do autoritarismo. O Decreto-lei surgiu na Carta Constitucional de 10/11/1937, para conceder a Getúlio Vargas a prerrogativa de legislar enquanto o Poder Legislativo permanecesse em recesso, situação em que permaneceu até a queda da ditadura (1937-1945). Desapareceu com a Constituição de 1946. para reaparecer no Regime Militar, no artigo 30 do Ato Institucional nº 2, de 27/10/1965.
Desprovida de coragem para incorporá-lo ao Processo Legislativo, a Assembleia Nacional Constituinte recorreu à imaginação e adotou a Medida Provisória, disciplinada no artigo 62 da Constituição de 1988, para ser utilizada pelo presidente da República nas situações em que houvesse urgência e relevância.
Desde outubro de 1988 não tivemos Presidente da República que resistisse à tentação de recorrer à legislação de caráter autoritário. Alguns mais, outros menos, todos se valeram de Medida Provisória, muitas vezes para assuntos desprovidos de urgência e relevância. Se relevantes, não eram urgentes. Se eram urgentes, não eram relevantes. O uso da MP foi de tal modo banalizado, que o Poder Legislativo se sentiu na obrigação de aprovar a Emenda nº 32/2001, com o objetivo de botar alguma ordem no circo.
Nos últimos dias, porém, o país foi colhido de surpresa, não por uma, mas por duas Medidas Provisórias. Refiro-me às MPs nºs 1.108 e 1.109, ambas baixadas no dia 25 de março. A primeira dispõe sobre o pagamento do auxílio-alimentação, tele trabalho e trabalho remoto. A segunda, composta por 47 artigos, trata, entre outras coisas, de tele trabalho, de antecipação de férias individuais, da concessão de férias coletivas, do aproveitamento e da antecipação de feriados, do banco de horas, da suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, da instituição, dos objetivos e das medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
Para editar ambas as MPs o Presidente Jair Bolsonaro, coadjuvado pelo Ministro do Trabalho, Onix Lorenzoni, violou a Lei Complementar (LC) nº 95, de 26/4/1998, alterada pela LC nº 107, de 26/4/2001. Com efeito, em nome da boa técnica legislativa o Art. 7º referida LC ordena, no inciso I, que “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único assunto”. O inciso II completa: “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto, ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.
A leitura de ambas MPs revela, de pronto, que a primeira cuida, simultaneamente, do pagamento do auxílio-alimentação e do tele trabalho ou trabalho remoto. A segunda disciplina assuntos dos mais diversos.
O Poder Legislativo, afrontado pelo uso abusivo de Medidas Provisórias por parte do presidente da República, não pode admitir a brutal violação da Lei Complementar nº 95/1998, que “Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”. Lei Complementar, como se sabe, é o apêndice que regula norma constitucional.
“Se a lei não for certa não pode ser justa. (….) Para ser certa, porém, cumpre que seja precisa, nítida, clara”, ensinou Rui Barbosa na Réplica (vol. II, pág. 304). As duas MPs são prolixas, confusas, precipitadas. O Estado autoritário é incapaz de aguardar que usos e costumes iluminem determinados assuntos, como no caso do tele trabalho ou trabalho remoto. Acredita na eficácia mágica das palavras. Estrangula a liberdade que deve prevalecer nas relações individuais e coletivas de trabalho, com o uso inadequado de legislação intervencionista.
Não bastasse, considere-se a inexistência dos requisitos relevância e especialmente urgência. Estamos diante de tentativa de reforma da Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, mediante Medidas Provisórias, cuja aprovação exige do Poder Legislativo celeridade incompatível com o período pré-eleitoral e os assuntos de que tratam.
As academias de direito do trabalho, entidades sindicais representativas de trabalhadores e de empresas, advogados, devem se mobilizar para exigir da Câmara dos Deputados a devolução das MPs ao Poder Executivo. A banalização do uso de ferramenta de caráter excepcional, pelo presidente da República, atenta contra o Estado Democrático de Direito e avilta o Poder Legislativo.
Gostaria de ouvir dos candidatos à presidência da República o compromisso de emendar a Constituição para extinguir a medida provisória, acabar com a reeleição, o Fundo Partidário e o Fundo de Financiamento Eleitoral. Será o bastante para ser recebido de braços abertos pelo povo.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho