No final da década de 50, flanando desatentamente pelos anos dourados, o Brasil despertou a admiração do planeta após os primeiros acordes intimistas da bossa nova. A cativante cadência, intrínseca e intransferivelmente brasileira, foi inaugurada pela timidez angelical de João Gilberto em “Chega de Saudade”. A saudade é patenteada pela língua portuguesa, inalienável, intraduzível. As canções, parcialmente pronunciadas, contidas, talvez por uma vergonha institucional inconfessável, inundavam os corações amargurados e cintilavam numa batida reconditamente revolucionária. Nada que o obscurantismo do golpe militar, poucos anos depois, pudesse embaçar.
Depois dos flertes sinceros com o iluminismo, a escuridão volta a enlutar o país. Os acordes fúnebres de outrora, os tons autoritários, as composições sanguinárias, as afinações perversas, as melodias torturantes insistem em ressoar como uma maldição inapelável, um flagelo ressuscitado cotidianamente. A saudade da luminosidade pretérita é infinita, hemorrágica e sugere uma orfandade desamparada. O Rio de Janeiro, berço esplêndido da bossa nova, do nostálgico beco das garrafas, subverte o ritmo. Tem nos apresentado falsetes inaudíveis, estilhaços da indigência, refugos da humanidade, resíduos de civilidade, cacos necrosados da criação e crepúsculos da raça. Eis a fossa nova, seus intérpretes demoníacos, melodias macabras recitando o prelúdio do caos.
Os compositores políticos do Rio desafinaram feio nas últimas turnês. Cinco governadores cariocas tropeçaram no compasso ético e foram presos. Recorrem em liberdade Moreira Franco, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho e Luiz Fernando Pezão. Sérgio Cabral é o único que segue trancafiado com sentenças seculares. Wilson Witzel, acusado de corrupção na saúde, em plena pandemia, acabou afastado do governo, mas, por ora, se esquivou do cantinho sem violão na cadeia. O presidente do partido dele, PSC, pastor Everaldo, foi preso e as graves acusações envolvem dezenas de outros colaboradores, inclusive o vice, e a primeira-dama, Helena Witzel.
Outra dama dissonante dos palcos fluminense é a deputada federal Flordelis. A Polícia e o MP prenderam oito pessoas pelo envolvimento na morte do pastor Anderson do Carmo, executado com mais de 30 tiros em 2019.Segundo a força-tarefa da Operação Lucas 12, a viúva, a deputada federal Flordelis, organizou toda pauta do crime usando o coral doméstico. Ela não pôde ser presa por causa da imunidade parlamentar, que só permite a prisão em flagrante. Segundo a polícia, o assassinato de Anderson era uma toada antiga de Flordelis. Antes tentara matar o marido por envenenamento.
A fossa nova carioca tem acordes particularmente repulsivos no assassinato torpe da vereadora Marielle Franco. No dia 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes – outro Anderson – foram mortos a tiros no Estácio, na região central do Rio. Quatro estampidos silenciaram a voz da vereadora e três atingiram o motorista. O MP do Rio de Janeiro apontou o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio de Queiroz como os executores dos assassinatos. Lessa é vizinho do capitão Bolsonaro em condomínio na Barra da Tijuca.
Dois dos filhos de Jair tocam na banda carioca da política: Flávio e Carlos. Eles são investigados pelo MP do Rio de Janeiro pela prática da chamada ‘rachadinha’, crime de peculato. A partitura do Senador, aponta o MP, contém uma sinfonia de anomalias que envolvem aquisição de imóveis fora do timbre, cirandas financeiras graves e agudas, circulações de notas suspeitas e uma loja com sonoridades de lavanderia. No centro do palco, no acompanhamento, está Fabrício Queiroz, amigo de Jair Bolsonaro e funcionário de confiança de Flávio quando deputado estadual. Parentes de Queiroz e do miliciano Adriano da Nóbrega foram servidores do ex-deputado estadual. A rachadinha afinou a relação da milícia com a política.
O prefeito Marcelo Crivella, terrivelmente evangélico, além de uma administração desarmônica, foi pilhado no relançamento da guarda pretoriana para cercear o trabalho da imprensa carioca. Funcionários de cargos de confiança da prefeitura, autointitulados de “guardiões”, foram escalados para ofender e tumultuar as coberturas jornalísticas sobre falhas no atendimento ao público na saúde. O MP abriu a investigação. O pedido de impeachment do prefeito foi rejeitado na Câmara Legislativa. O voto do vereador Carlos Bolsonaro em favor de Crivella dá a letra.
Outro ícone do réquiem carioca esteve preso até bem pouco tempo. Ganhou a prisão domiciliar junto com a tornozeleira em razão da Covid. Eduardo Cunha tinha a batuta da Câmara dos Deputados que serviu como diapasão do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef. Foi condenado a 15 anos por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Engrossa o coro dos presidiários políticos do Rio, frequentado por governadores e o ex-deputado Roberto Jefferson, aliado do capitão. O grupo é reforçado por dois ex-presidentes da Alerj, Jorge Picciani e Paulo Melo, além de outros nomes menos conhecidos dos palcos nacionais.
Esse concerto carioca desconcertante inclui ainda comportamentos de políticos mais conhecidos pela agressividade do que pelo conteúdo de propostas legais ou debates socioeconômicos. Ex-vice-líder de Bolsonaro e do partido de Witzel, Otoni de Paula, foi denunciado pela PGR, acusado de ameaçar o ministro Alexandre de Moraes, do STF com graves ofensas. O parlamentar é investigado no inquérito que apura a organização e o financiamento dos ensaios antidemocráticos, pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso Nacional. Sem falar nos cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro presos, afastados e processados por corrupção e lavagem de dinheiro.
A fossa nova entoa a fedentina dos bueiros mais infectos, a purulência dos ratos e dos esgotos, a morte malignamente reencarnada, a indignidade humana, a indigência, o último degrau da ignorância, o ralo da insipiência orgulhosa. É a fossa nova séptica soprando pestilência, espalhando dor, mortes e uma viscosa idiotia. A afinação peçonhenta contra democracia, a percussão golpista, a batida genocida, inescrupulosa, a cegueira errante. Ouvimos uma modulação repugnante da história, desprezível e abjeta. A vilania putrefata e imutável. As trevas irão passar, a história jamais. Os ciclos históricos não se penalizam com nossa ansiedade.
O passado aterroriza nossa porta evocando ritmos fantasmagóricos. As vozes da nova política com sussurros do pretérito ecoam a partir do Rio de Janeiro: Jair Bolsonaro, Wilson Witzel, pastor Everaldo, Marcelo Crivella, Flordelis, Flávio e Carlos Bolsonaro. Dois juízes desafinados ressuscitaram a censura. Contra o jornalista Luís Nassif e proibindo a TV Globo de exibir documentos contra Flávio Bolsonaro. O Rio de janeiro, infelizmente, perdeu a bossa, aquele jeito novo, criativo e cativante. Afundou em uma fossa escura, entendida como bueiro ou depressão. Na memorável “Insensatez”, o maestro Antônio Carlos Jobim ensinou: “Quem semeia vento, diz a razão, colhe sempre tempestade”.