Sertão – a forte palavra, V

Os Divergentes publica hoje a quinta e última parte de resenha de Patrus Ananias sobre a principal obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. A resenha foi publicada sempre aos domingos na forma de folhetins, nos moldes machadianos. No final do post, os links para textos anteriores

Guimarães Rosa / Arquivo de familia

O sertão vai integrando seres, realidades, sonhos, recordações, fantasias, desejos.

Assim, o sertão é também o lugar da sexualidade vivida, sublimada ou reprimida. A História, a Psicanálise, sobretudo a experiência da vida nos ensinam que a sexualidade – prazerosa e delicada expressão humana – associada ao poder, tornam as duas tão mais perigosas quanto menos transparentes, verdadeiras e espontâneas. No Grande Sertão: Veredas, a sexualidade está à flor da terra e da pele. A relação com Diadorim é um volume à parte. A neta de Seo Ornelas perigou no caminho do comandante: “a boniteza dela esteve em minhas carnes”. Riobaldo disputava o lugar entre os grandes chefes: “Mas sou, de mim, o Urutu-Branco, Riobaldo que Tatarana já fui; o senhor terá ouvido? Aí o mais esse sertão tem de ver, quem mais se abre e mais acha”. O sertão demoníaco do poder pede espaços: impor, dominar, violentar: “A mocinha essa de saia preta e blusinha branca, um lenço vermelho na cabeça (…) A mocinha me tentando, com seu parado de águas”. Riobaldo se superou. Afastou da sua chefia o poder de estuprar mocinhas e destruir famílias: “não perigou: no instante achei em minha idéia, adiada, uma razão maior – que é o sutil estatuto do homem valente. Aquela formosura, aquela delicadezazinha, então podem ser assim, em toda segurança, feito ela fosse, por um exemplo, filha minha (…) Mas eu não quis! Ah, há-de-o, quanto e qual não quis, digo ao senhor: e Deus mesmo baixa a cabeça que sim: ah, era um homem danado diverso, era, eu – aquele jagunço Riobaldo…” O sertão masculino, guerreiro é também feminino: “O sertão não chama ninguém às claras; mas, porém, se esconde e acena (…) Mas o sertão de repente se estremece debaixo da gente… E – mesmo – possível o que não foi. O senhor talvez não acha? Mas, e o que eu estava dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinhá, por causa. Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou…” E foi de uma bonita mulher da vida, no Verde-Alecrim, que o chefe Urutu-Branco recebeu a boa lição, quando não quis que ela acolhesse também um de seus cabras: “Tu achou a gente aqui, no afrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo, tu tem?” Diante de sábia interpelação, Riobaldo ponderou: “A doidivã era uma afiançada mulher. No sertão tem de tudo”.

Benzedeira – Foto: Orlando Brito

O poder vai se acalmando, encontrando águas mais calmas, sempre mediando os desafios e apelos de fora com a boa prática socrática da reflexão e do auto-conhecimento: “O sertão vige é dentro da gente (…) O senhor faça o que queira e o que não queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro, muito desastroso. O senhor…” Há o sertão do destino, do imprevisível, do imponderável. Mas há também o sertão da nossa liberdade, escolhas, das profundezas de cada pessoa, a inquietação do ser que incorpora, como vimos, a tradição existencialista de Kierkegaard a Heidegger.

O sertão sendo assim a vida mesma é o universo e o além, os mundos daqui e dacolá, é esse Brasil imenso com as suas travas, a sua formação inacabada, extensões enormes, diferenças, pobrezas andantes, esquecidas e abandonadas, forças subterrâneas, horizontes sem fim; é cada lugar na sua plural singularidade, é o trem, uai, que põe mais perto do velho Riobaldo o médico de Sete Lagoas e que leva o sertão para a cidade. Sertão é o tempo que vai, e se perde e se recupera, fragmentado, confuso, enriquecido nas trilhas entrecruzadas das reminiscências e do inconsciente; é a história de cada um inserida na aventura comunitária, nacional e humana dos momentos e épocas que se sucedem. É também o futuro que se anuncia: “Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e desses, altas, é o que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo de sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam as imensidões por sobre… Travessia perigosa, mas é da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Até envelhecer vento. E os brabos bichos do fundo dele (…) Como o sertão é grande (…) o sertão se abalava?”

Paisagem do Norte de Minas – Foto: Orlando Brito

Os tempos eram de guerra, vida e morte, muito juntas, atreladas. Tempo de espera, horas, dias longos; vai se armando o cenário para o grande confronto no Paredão. A morte se prenuncia, espreita na linguagem simbólica dos pássaros que passam – urubu, gavião. Riobaldo volta a eles e incorpora a gaivota, implacável caçadora de peixes e bichos aquáticos, aves migrantes que vêm de longe, do beira-mar, fazer seus ninhos nas nossas minas serranas, montanhosas: “Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas (…) O sertão é uma espera enorme”. Ser e Tempo. O ser no tempo.

No meio da batalha, o sertão se torna um ente poderoso, divinizado. O senhor da guerra? Deus mesmo na simbologia bíblica do Profeta Jonas? “Porque aprender a vida é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente do quente da boca…” Deus vomita os tépidos.

O sertão não é o demo, o mal na cosmovisão rosiana não tem a última palavra, ainda que seja na brutalidade da guerra: “eu ia denunciar o nome, dar a cita: … Satanás! Sujo! e dele disse somentes – S… sertão… sertão”. Urutu-Branco pergunta ao cego Borromeu: “Você é o sertão?”

Finda a guerra, derrotados os hermógenes, fechado o ato final da tragédia, morto Diadorim, recordando aquele momento, Riobaldo pergunta ao seu discreto interlocutor: “O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?…”

Depois da guerra, Riobaldo ultimou o jagunço que era: “Disse adeus para todos, simplesmente (…) Desapoderei”. Deu então para especular idéias. E entre tantas nos deixou essa inquieta questão sertaneja e com ela algumas picadas que buscam o seu variado e múltiplo sentido: territórios, vivências, sentimentos, lembranças, sonhos, possibilidades. Vida e morte. Renascimento. Palavra mágica, expandida, bem nossa. Do Brasil para o mundo, outros mundos. O sertão carrega amores. Espalha como o vento energias boas. Boas novas: “Do fundo do sertão. O sertão: o senhor sabe”.

[Com a publicação Sertão – a forte palavra, V, Os Divergentes completa a divulgação desta resenha.]

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