Sertão – a forte palavra, IV

Os Divergentes publica hoje a quarta parte de resenha de Patrus Ananias sobre a principal obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. A resenha está sendo publicada todos os domingos na forma de folhetins, nos moldes machadianos. No final do post, os links para textos anteriores. No próximo domingo, o último folhetim da resenha de Patrus

Veredas e sertões - Divulgação Governo de Minas

“O mundo é mágico”.

Numa obra das proporções do Grande Sertão: Veredas, não poderia faltar o tema da culpa, tão presente nos clássicos da tragédia grega, na tradição judaico-cristã e suas ramificações como o islamismo, o marxismo, a própria obra de Nietzsche. Encontra-se presente e elaborada na psicanálise, sobretudo, na vida e na obra monumental de Sigmund Freud. Riobaldo carrega culpas. A culpa do pacto; ele pode não ter ocorrido – “o diabo não há” – mas Riobaldo se dispôs a fazê-lo. Viveu uma estranha e perigosa experiência. Transgrediu regras e limites humanos. Culpa do amor – e que amor! – por Diadorim. Outras culpas: a relação com o pai, com Zé Bebelo. O sertão e a culpa se encontram: “tudo por culpa de quem? Dos malguardos do sertão”. Malguardos!

O sertão cresce como dimensão interior e existencial no encontro do homem com o seu pleno destino. A busca de Riobaldo de sua própria essência, vocação e liderança, o seu longo e complexo processo de formação no contexto de um espaço territorial desgovernado ganha novos focos e possibilidades quando Diadorim, amor e alter-ego de Riobaldo, vai desvendando, na hora da crise, além das suas qualidades de guerreiro e exímio atirador já comprovadas, os crescentes sinais de liderança e chefia: “… de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que, quando você quiser calcar firme, com as estribeiras, a guerra varia de figura”. Riobaldo resiste: “eu era o contrário de um mandador”. Mas Diadorim tinha poderes.

Tony Ramos e Bruna Lombardi no papel de Riobaldo e Diadorim – Foto reprodução TV Globo

Entre dúvidas e temores, começa a se firmar, estranho e contraditório o futuro chefe, o Urutu-Branco, comandante dos “jagunços meus, os riobaldos”. Foi um processo. Riobaldo foi apalpando, sentindo as ebulições interiores, as condições do conflito que estavam vivendo, já então sob a liderança fragilizada, posta sob suspeita, de Zé Bebelo. Riobaldo vivia os seus momentos de espanto, momentos de sertão: “Rebulir com o sertão, como dono. Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela (…) Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma”. Exercer cargo de supremo comando e nunca ter certeza de coisa nenhuma são, de fato, coisas de difícil acerto. Se bem que em épocas de tantas certezas vazias como a nossa, talvez fosse interessante… Mas devagar as convicções mais profundas de Riobaldo vão se impondo.

A liderança de Zé Bebelo cada dia mais fragilizada conduz aos caminhos mais confusos: “Nós estávamos em fundos fundos”. Mas a hora de Riobaldo não havia chegado: “Mas eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda”. Enquanto isso, a hora sertão se aproximava, o encontro direto com a dura realidade: “Sertão – se diz – o senhor querendo procurar não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera o sertão vem. Mas, aonde há, era o sertão churro, o próprio mesmo”.

Riobaldo gostava de Zé Bebelo e sua personalidade sedutora o encantava. Começam a divergir sobre os caminhos e estratégias do sertão: “Zé Bebelo previa de vir, cá embaixo, no escuro do sertão, e, o que ele pensava, queria, e mandava; tal a guerra por confrontação; e para o sertão retroceder, feito pusesse o sertão para trás”.

Guimarães Rosa – Album de família

Zé Bebelo continua com seus discursos cívicos, nacionais: “Ei, do Brasil, amigo (…) vim departir alçada e foro: outra lei – em cada esconso, nas toesas deste sertão (…) Zé Bebelo que esses projetos ouvisse, ligeiro era capaz de ficar cheio de influência: exclamar que era assim mesmo, para se transformar naquele sertão inteiro do interior, com benfeitorias para um bom governo, para esse ô-Brasil”. Às desconfianças pessoais e estratégicas, acresce um certo cansaço, desgaste com as falas discursivas de Zé Bebelo. O momento exigia outro comando, outra leitura do sertão. “Zé Bebelo, para mim, tinha gastado as vantagens”.

Quando “os prazos principiavam”, quando Riobaldo perde de vez a confiança na liderança e no discernimento de Zé Bebelo, começa por desqualificá-lo, em tom de blague e ironia, justo no seu desejo de organizar e por ordem no sertão: “os benefícios que os grados do governo podem desempenhar, remediando o sertão do desleixo”.

Já então revestido do poder de chefia, o Urutu-Branco ouve do Seo Ornelas, velho fazendeiro, palavras que expressam o sertão como território da antítese, dos contrários, começando por uma boa síntese: “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado. O sertão é confusão em grande demasiado sossego…”

No poder, Riobaldo viveu as grandes tentações: “Eu era o chefe. Vez minha de dar comando e estar por mais alto (…) Todos deviam de me obedecer completamente”. Sentiu o sertão sob seus pés. O coração de Riobaldo estava na dura disputa; a forte, envolvente auto-justificadora sedução do poder autocrático, tirânico, desprovido de sabedoria e compaixão. Assim há tantos exemplos, entre trágicos e caricatos, na ficção e na História, de cruéis ditadores, enlouquecidos pela arrogância e prepotência.

Mas o nosso bravo jagunço resistiu. Aprontou algumas, mais ameaçou do que fez, mas não se tornou mais uma besta na insensata nau dos poderosos que perdem a consciência dos seus próprios limites e fragilidades. Tudo por conta de uma vozinha frágil, bendita, nossasenhorazinha. Voz que emergia dos fundos do sertão da consciência: “Ah, um recanto tem, miúdos remansos, onde o demônio não consegue espaço de entrar, então em seus grandes palácios. No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha dizia: ‘tento, cautela; toma tento Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar tua decisão”. E a escolha, nessas horas, se impõe inescapável, peremptória: “Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa…”.

O chefe Riobaldo, o poderoso Urutu-Branco, assume comandar as suas tropas, fazer a guerra, derrotar os Hermógenes, mas não abre mão de pastorear os seus sertões interiores. As opções, todavia, nunca são claras, estáveis, definitivas. O sertão tem variadas faces, interage com os humanos, está sempre em movimento, é sempre um vir a ser heraclitiano: “Mas o sertão está em movimento todo-tempo-salvo o que o senhor não vê (…) Sertão não é maligno nem caridoso (…) ele tira ou dá, agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo”.

O sertão vai integrando seres, realidades, sonhos, recordações, fantasias, desejos.

[Sertão – a forte palavra, V, o último folhetim da resenha, será publicado no próximo domingo, 18 de agosto.]

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