Sertão – a forte palavra, I

Guimarães Rosa - Foto Eugênio Silva, acervo da Revista O Cruzeiro/Álbum de família

          Poucas pessoas conhecem tão bem a obra de Guimarães Rosa como Patrus Ananias. Os Divergentes publica, a partir deste domingo, 21, resenha de Patrus sobre a principal obra do conterrâneo mineiro, Grande Versão: Veredas. O texto sairá em capítulos todos os domingos – ou folhetins, como o fazia Machado de Assis nos matutinos cariocas.
(Itamar Garcez)

A emoção e o encantamento que sentimos depois de uma boa releitura do Grande Sertão: Veredas não nos permitem fugir ao lugar comum, repetir o que tantos já disseram e de forma mais elegante: o romance sapiencial de Guimarães Rosa é uma obra oceânica, inesgotável. Além de ser um esplêndido, clássico romance inserido na mais histórica e elevada tradição do gênero, Grande Sertão: Veredas emerge como um grande livro, fundamental mesmo no processo de conhecimento da formação e dos desafios do Brasil. A obra tem ainda a respaldá-la e fecundá-la um elevado teor de indagações e reflexões filosóficas.

Neste texto pretendo trabalhar diferentes acepções da palavra “sertão” no livro, que desde o título o coloca como grande, associado às veredas, águas rasas, discretas, silenciosas com carreiras, belíssimas, de buritis, repondo também a dimensão do caminho estreito, referência sutil de rumo, oásis nas regiões e nos tempos mais secos dos gerais, do cerrado, da caatinga.

O meu desejo inicial era trabalhar o variável significado da palavra sertão nos níveis do romance, da geografia, da história e da política brasileiras e das questões filosóficas. Não foi possível em face das características da obra. Essas dimensões, e tantas mais, são indissociáveis no livro e os volteios do narrador vão amarrando pela memória as diferentes pontas do sertão, embora Riobaldo achasse que elas “nem não misturam”. Mas são astúcias rosianas… “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”.

Como Riobaldo é um narrador que vai alterando os assuntos, fica difícil, se não impossível, um acompanhamento temático, sistêmico, linear da sua fala que vai acompanhando os fluxos da memória, das reflexões, das dúvidas, do inconsciente. Melhor, então, é acompanhá-lo na sua aventura e relação com a palavra emergente, crescente-sertão.

Guimarães Rosa no sertão – Foto Eugênio Silva, acervo da Revista O Cruzeiro/Álbum de família

O cenário inaugural do Grande Sertão: Veredas onde se desenvolvem os acontecimentos vividos e narrados por Riobaldo Tatarana, é uma realidade muito nossa, profundamente brasileira, e tem como referência fundamental o Rio São Francisco, que de “tão grande se compadece”, símbolo e expressão concreta da unidade nacional. O espaço territorial, tão bem mapeado por Alan Viggiano no seu livro Itinerário de Riobaldo Tatarana, é uma região que compreende o centro-norte de Minas, integrando, além do São Francisco, o Vale do Jequitinhonha, o Sul da Bahia, e o centro-leste de Goiás e Tocantins, incluindo os terrenos do Planalto Central sobre os quais se ergueu a Capital do Brasil. Essa região forma um magnífico ecossistema, hoje muito machucado, exaurido e seriamente ameaçado de extinção: o cerrado. E forma, também, o pano de fundo do romance.

Já na primeira página, o autor, sempre se confundindo com o seu esplêndido personagem e narrador, contextualiza o sertão em termos geográficos e de espaços vazios, não ocupados, territórios confusos e difusos como sempre foi o complexo e não resolvido tema da ocupação de terra no Brasil. Explicita ainda a ausência total do Estado e da lei: “O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é para os campos gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade”.

Feita essa apresentação aparentemente descritiva do sertão, eis que ele ganha novas proporções. Transcende as áreas externas e internas. A palavra sertão abre largo. Expressa todos, os mais diferentes territórios, visíveis ou sentidos, pressentidos, intuídos. “O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho (…) O sertão está em toda a parte”.

Guimarães Rosa apresenta, assim, o sertão sob os mais diferentes enfoques e sentidos.

[Sertão – a forte palavra, II será publicado no próximo domingo, 28 de julho.]

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