Prescreve a Constituição de 1988, no artigo 5º, XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempos de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. O dispositivo está ligado ao inciso LXVIII do mesmo artigo, cujo texto diz: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
A garantia fundamental ao direito de livre locomoção, da qual Rui Barbosa foi paladino na Velha República, tem as raízes no artigo 122, nº 16, da Carta Constitucional de 1937, que deferia o habeas corpus às vítimas de violência ou coação ilegal “na sua liberdade de ir e vir”. O artigo 141, § 23, da Constituição de 1946, restringia, também, o benefício ao direito de locomoção. Determinava que “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se encontrar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”, salvo na hipótese de transgressão disciplinar. Assim também o fazia a Constituição de 1967 (Emenda nº 1/69).
O deferimento, pela E. 2ª Turma do C. Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido de habeas corpus 193.726-Paraná, em Embargos de Declaração, é caso de nocivo ativismo judicial. Viola os limites do artigo 5º, XV e LXVIII, da Constituição e gera nefasto precedente cuja eliminação se exige em nome dos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade que devem presidir decisões judiciais.
A sentença observa a ordem prescrita no artigo 381 do Código de Processo Penal (CPP). Traz “exposição sucinta da acusação e da defesa”, “a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão”, a “indicação dos artigos de lei aplicados”, “o dispositivo”. Diz o ministro Edson Fachin, relator do feito, em itálico no original: “Após declinar argumentos pelos quais entende viável o ajuizamento da pretensão na via do habeas corpus, sustentam os impetrantes, em síntese, que, nos fatos atribuídos ao ora paciente ‘não há correlação entre os desvios praticados na Petrobrás e o custeio da construção do edifício ou das reformas realizadas no tal triplex (sic), feitos em benefício e recebidas pelo Paciente’” (Doc. 1). Frise-se ser Paciente Luís Inácio Lula da Silva.
Qual a pretensão deduzida no pedido? A resposta está no trecho que diz: “Requerem a concessão da ordem de habeas corpus para declarar a incompetência do Juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba e, por consequência, a nulidade dos atos decisórios proferidos na Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000. Subsidiariamente, caso não conhecida a impetração, postulam pela concessão da ordem do art. 193, II, do RISTF”.
Ao concluir a exposição destaca o Relator: “Pretendem, ao fim, o conhecimento e acolhimento dos embargos declaratórios, atribuindo-lhes efeitos infringentes (sic), para “reafirmar a competência da 2ª Turma do Egrégio Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar o habeas corpus em questão” (Doc. 27, fl. 13)”. (itálico no original).
Habeas Corpus, na definição de De Plácido e Silva “É o instituto jurídico que tem a precípua finalidade de proteger a liberdade de locomoção ou o direito de andar com o corpo”. Para Pontes de Miranda não é recurso ou “meio ordinário para corrigir a injustiça da sentença”. Magalhães Noronha leciona que tem por objeto “a liberdade física”.
Lula deixou a prisão de Curitiba no dia 8/11/2019. Quase um ano depois, em 3/11/2020, os advogados deram entrada ao pedido de habeas corpus, quando não mais estava impedido de se locomover. Encontrava-se no exercício do direito de ir e vir graças à decisão do mesmo STF. Beneficiava-se do artigo 5º, LVII da Constituição, cujo texto diz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgador de sentença penal condenatória”.
Encontramo-nos diante de fato insólito e isolado na história do direito. Advogados impetram habeas corpus em favor de Paciente a quem eles mesmos libertaram da prisão. O julgado da E. 2ª Turma vulnera, portanto, o artigo 5º, LXVIII, da Constituição e os artigos 647, 648 e seguintes do CPP.
Com a devida vênia, a História do STF acusará o inexplicável erro de julgamento.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Ex ministro do Trabalho e também presidente do Tribunal Superior do Trabalho