O brasileiro médio, provavelmente, desconhece Tzvetan Todorov, filósofo e filólogo nascido na autoritária Bulgária, radicado na França e falecido em 2017. A obra “Os inimigos íntimos da democracia” (2012) antecipa em 6 anos alguns dos principais diagnósticos sobre a crise da representação popular relatada no renomado “Como morrem as democracias”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
A abordagem de Todorov é menos pontual e mais conceitual. Ele sustenta que o mal surge do bem e o conceito de liberdade, litigado entre direita e esquerda, está, paradoxalmente, no centro desse debate. Todorov, em rápidas linhas, advoga que o uso desmedido da liberdade individual, quando intenta se sobrepor à vontade comunitária, cria o populismo, nazismo, fascismo, messianismos e outros impulsos absolutistas.
A tirania do indivíduo, amparada no uso e abuso das liberdades pessoais, gesta esse inimigo íntimo que coloca em xeque o próprio conceito da democracia e seus alicerces mais sagrados. A invocada liberdade da expressão ilimitada, consagrada na 1 emenda dos EUA, também foi comum na gestação do franquismo, do fascismo e do nazismo. Todos os tiranos, algum dia, foram partidários da liberdade.
No simulacro absolutista local, o capitão Bolsonaro insiste em impor sua compreensão tosca e obscurantista contra a ciência, a democracia, a maioria do País e do mundo. Eleito com 39,2% dos votos (57 milhões), ele representa a minoria. Por isso só fala para o próprio nicho. Dos 147,3 milhões de eleitores aptos em 2018, 61,8% não chancelaram seu nome, a maioria esmagadora – 89 milhões – o recusou. Como os nazistas, pela tática da repetição na realidade paralela das redes sociais, tenta manufaturar um universo inexistente com base em falsidades.
As fake news, matéria prima eleitoral e utensílio da gestão, traduzem sua maior vulnerabilidade. O filho tentou, em vão, trancar o inquérito no STF. A busca e apreensão contra aliados incomodou. “As coisas têm limite. Ontem foi o último dia e peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar mais poderosas que outros que se coloquem no seu devido lugar, que respeitamos. E dizer mais: não podemos falar em democracia sem Judiciário independente, Legislativo independente para que possam tomar decisões. Não monocraticamente, mas de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra!”, bravateou o capitão em 28 de maio.
“Mas obviamente, ordens absurdas não se cumprem. E nós temos que botar um limite nessas questões”. A insurreição verbal de descumprir decisões judiciais não ultrapassou a bravata. Na vida real se curva a cartilha jurídica tradicional, mas a retórica, deliberadamente beligerante, é um método. A reação pública obedece a parâmetros comportamentais para manter sua base ativada: vocabulário agressivo, infusão do terror, sectarismo, deslegitimar as instituições, intimidação e tentativa de isolar adversário de ocasião, como fazia da máfia de Al Capone, que caiu por crimes menores.
Outro estratagema é tentar sequestrar conceitos e termos dos verdadeiros democratas, totalmente exógenos a formação de absolutistas. A pirataria acaba por acentuar contradições risíveis. Além da liberdade de expressão, os alvos do baculejo determinado pelo STF, invocaram o abuso de autoridade, regulamentado contra a vontade deles, e até a imunidade parlamentar como salvo conduto para transgredir. O paradoxo é tão irrefletido que chega ao absurdo de transcrever frases nunca pronunciadas. Exemplo foi Winston Churchill, o implacável demolidor de nazistas e fascistas. A investigação que o STF toca versa sobre fake News, não trata da opinião irrelevante e remunerada nenhum dos mandriões do capitão, apenas da prática de crimes.
Ao ser cogitada a apreensão do celular do presidente, em 22 de maio, diligência rotineira, o general do pijama listrado, Augusto Heleno, chiou em mais uma fanfarronice golpista: “O pedido de apreensão do celular do Presidente da República é inconcebível e, até certo ponto, inacreditável. Caso se efetivasse, seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder, na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional do País. O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Dias depois, desperto do delírio autoritário das pantufas, o velhaco golpista parece ter se arrependido: “Intervenção militar não resolve nada. Ninguém está pensando nisso. Não houve esse pensamento nem da parte do presidente, nem da parte de nenhum ministro. Isso só tem na cabeça da imprensa. A imprensa está contaminada com isso, não sei por que”. Depois o vice, Hamilton Mourão, que desempenha o papel “morde e assopra”, endossou: “Quem é que vai dar golpe? As forças armadas? Que que é isso, estamos no século 19? A turma não entendeu. O que existe hoje é um estresse permanente entre os poderes. Eu não falo pelas Forças Armadas, mas sou general da reserva, conheço as Forças Armadas: não vejo motivo algum para golpe…Quem vai fechar Congresso? Fora de cogitação, não existe situação para isso”. Luis Eduardo Ramos, general e ministro é outro de comportamento dúbio.
O capitão usa o nome das Força Armadas, que são expostas à vergonha pública e não reagem. Nos EUA, a maior autoridade militar, general Mark Milley, se desculpou por fotos incômodas ao lado de Donald Trump, exploradas politicamente. Em plena crise do Covid19, o golpismo por aqui desavergonhou-se no ato pedindo o AI-5, intervenção militar, o fechamento do Congresso e do STF em frente ao QG do Exército. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, regurgitou o capitão. “Chega da velha política. Estou aqui porque acredito em vocês e vocês estão aqui porque acreditam no Brasil”. Agora atraiu para o coração do governo Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto, dois integrantes da nova política sentenciados por corrupção.
Dias depois, em 03/05, depois da rendição diante do veto do STF ao indicado para PF, o capitão arremeteu: “Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, pela liberdade. Nós queremos o melhor para o nosso país… Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência. Acabou a paciência… Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa semana. Porque chegamos no limite, não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição”. Na última semana insistiu: “Raramente existe uma faixa pedindo AI-5, mas não sei porque ministro do Supremo fica preocupado com isso. Não existe AI-5. É falar de boitatá, bicho papão, mula sem cabeça”.
A mula sem cabeça tentou, mas não obteve a quartelada. É um eunuco golpista. Foi empurrado para o plano B. Blindar o impeachment com cargos para o Centrão. Isso não o impede de seguir entoando a melodia disruptiva, mesmo após inúmeras travas institucionais. A conspiração contra a democracia tem maquinações recorrentes que almejam o enfraquecimento das instituições, o encorajamento ao confronto, a redução das liberdades, a eternização polarização, terceirização de fracassos, questionamento das regras perenes da democracia e a disseminação goebeliana da mentira. Pelo conjunto da obra, o capitão tem diante de si três frentes que ameaçam seu mandato: processos no TSE, 35 pedidos de impeachment e 3 investigações por crime comum.
Ao recriar o ministério das Comunicações para o Centrão, o capitão turbinou os poderes da pasta. Capitulou para se ajoelhar ao presidencialismo de coalizão. Além das renovações das concessões de TV e rádios, a pasta distribuirá a verba publicitária estatal pela docilidade dos veículos e terá condução decisiva no bilionário negócio da banda 5G, que opõe Estados Unidos e China. O neófito ministro se oporá aos métodos do gabinete do ódio, às fake News ou será castrado como foi Santos Cruz, Gustavo Bebbiano e o fascista Sérgio Moro? O xeque dado pelo capitão contra a democracia era falso. O risco agora é se tornar um eunuco no harém dos cheques do centrão.