O artigo do ex-czar da economia no governo de Dilma Rousseff, professor Nelson Barbosa, na Folha de São Paulo de hoje, caiu como uma bomba nos arraiais da esquerda tonitruante. Desculpem-me os leitores a batida frase de efeito, mas não há outra para descrever o impacto desse texto, na manhã de sexta-feira, quando as ideias do ex-ministro da Fazenda ganharam as ruas (e chegaram às cabeças confundidas com o conteúdo que se lia).
Para espanto geral, o economista mais falado para ser o chefe da equipe econômica no próximo governo petista diz, com todas as letras, que o projeto de reforma da previdência enviado pelo governo atual ao Congresso (o projeto original, não este mutilado por concessões que entra na pauta da Câmara dos Deputados) vinha do governo Lula e depois mantido por Dilma Rousseff e que, agora, faz nova investida destinada ao fracasso pelo administrador remanescente da aliança de 2010/14, o atual presidente Michel Temer.
A começar pelo tratamento dado pelo articulista ao chefe do executivo: “O governo Temer entrou em sua fase final”, diz Barbosa, esquecendo-se dos epítetos obrigatórios nas manifestações petistas, tais como “ilegítimo” e “golpista”, para falar dos mais amenos.
Dois pontos devem ser pinçados dessa reflexão de Nelson Barbosa: uma reforma profunda é inevitável e, também, o sistema contém uma “injustiça distributiva”, ele diz, referindo-se aos “privilegiados” do setor público, neste momento sob ataque. De fato, os “marajás” do funcionalismo inativo venceram todas as batalhas desde sempre e nunca perderam suas vantagens, efetivamente assim chamadas, pois catapultam valores a alturas estratosféricas.
Chama atenção à referência de Barbosa aos movimentos nos governos anteriores, que eram integrados por Michel Temer como vice-presidente, sugerindo que haveria uma continuidade. Neste sentido, essa colocação deve ser aproximada das recentes declarações do candidato Lula, com afagos aos peemedebistas, o tal “perdão” aos “golpistas”, que vêm estarrecendo a militância perplexa.
Neste ponto, para respaldar o raciocínio do repórter, vale a reprodução na íntegra do argumento do ex-ministro: “As principais linhas da reforma devem ser a recuperação da receita do INSS, o aumento do tempo mínimo de contribuição, a fixação de idade mínima para a aposentadoria e, mais importante: o alinhamento entre as regras aplicáveis a trabalhadores do setor público e do setor privado”.
Parece Henrique Meirelles falando, não fosse o atual ministro egresso da administração petista, como se constata no argumento seguinte de Barbosa, a saber: “Tudo isso já fazia parte da proposta de reforma de Previdência em construção pelo Ministério da Fazenda no início de 2016. Ela foi incorporada pela atual administração, com menos ênfase no aumento de arrecadação”. A reforma do Meireles seria a mesma da Dilma?
O ponto mais assustador para os políticos em geral, não só os petistas, que terão de enfrentar o problema e depois sair às ruas pedindo votos são os chamados privilégios dos funcionários, ou, como se diz no sindicalismo, as “conquistas” dos servidores públicos. Esta é uma missão impossível, tamanho o poder desse estamento no estado brasileiro e, por conseguinte, na sociedade. Será uma dificuldade.
A verdade é que mexer nos privilégios dos funcionários da Coroa é impossível desde os tempos coloniais. O Brasil, já a partir dos anos 1500, foi um país muito estranho e bem diferente de seus vizinhos hispânicos.
Assim foi e continua sendo. As escolas superiores criadas no alvorecer da Independência, as faculdades de Direito de Olinda e São Paulo não visavam formar advogados, mas administradores públicos. Substituía a Universidade de Coimbra. O País dos bacharéis.
Vieram novos institutos, mas o princípio continua vigorando. Nunca os governos e parlamentos conseguiram quebrar essa condição: nem na República, nem em 1930, nem em 1964 e muito menos a tentativa atrapalhada e trágica do ex-presidente Fernando Collor. É uma elite inexpugnável que derruba qualquer reforma, venha de onde vier. Isto é uma realidade política.
Quem não se lembra do recém-empossado presidente Lula chegando ao Congresso com um ônibus cheio de governadores para fazer a grande reforma? Nem mesmo o presidente mais popular da História deste país conseguiu resultado. Quanto da desestabilização de Dilma não estaria submersa na informação do ex-ministro Nelson Barbosa dos termos de uma reforma que ela pretenderia oferecer ao Congresso?
Barbosa adverte aos candidatos da vertente esquerdista: “Mesmo com os avanços dos últimos anos, todos eles nos governos do PT, ainda é preciso fazer mais na Previdência. Esse assunto precisa ser debatido agora e em 2018, pois parte da atual desconfiança popular nos políticos vem da diferença entre discursos de campanha e medidas adotadas após as eleições”.
E continua: “Os avanços dos governos petistas nessa direção são relembrados: “Lula iniciou seu governo com uma reforma sobre os servidores civis fixando idade mínima e criando contribuição de inativos, que, apesar de não resolver todo o problema, estabilizou o gasto federal com esses benefícios em proporção do PIB.
Dilma também adotou medidas estruturais, como a criação do fundo de pensão para novos servidores civis, em 2012, e a mudança nas regras de concessão de novas pensões pormorte e auxíli0-doença pagos pelo INSS, em 2015”.
Esforços nesse sentido já vinham do governo do PSDB, mas também fracassaram no legislativo, como rememora Barbosa: “Há várias formas de reformar as aposentadorias, como indica nossa história recente. Por exemplo, depois de perder a votaçãopor um voto, FHC criou o fator previdenciário, o que aumentou o déficit do INSS no curto prazo e não resolveu o problema de longo prazo (mas não conte isso a tucanos)”.
A conclusão é de que o artigo de Barbosa é um documento politico muito importante neste momento (tal como o artigo dos intelectuais tucanos, Bolívar, Arida e Bacha), e visa preparar seus correligionários para o gosto amargo do fel da realidade fiscal do Brasil.
Assim como Lula reverte o discurso para chamar de volta seus aliados eleitorais e companheiros de governabilidade, o PMDB de Michel Temer, o ex-ministro adverte que o PT terá de desembarcar de certas corporações para conseguir fazer alguma coisa quando voltar ao governo em 2019: “Nesse caso, como a esquerda enfrentará a reforma da Previdência se vencer as eleições de 2018? A solução não é fazer o discurso equivocado de que não há déficit para, depois da corrida eleitoral, apresentar uma proposta de reforma. A Previdência tem déficit, e os eleitores merecem um tratamento objetivo dessa questão”.
Aparentemente as vertentes dos partidos de esquerda esperariam de Temer o sacrifício político de vencer no Congresso e impor ao país uma reforma da previdência intragável do ponto de vista eleitoral. Considerando que o atual presidente da República não tem aspirações eleitorais futuras, ele ficaria com o ônus da impopularidade e a glória da História.
Entretanto, deu tudo errado, como sugere Barbosa: “Hoje, a perspectiva de reforma da Previdência é muito mais incerta, como admitiu o próprio presidente nesta semana. Mesmo que se aprove alguma coisa, provavelmente o próximo governo terá de voltar ao tema”.
E complementa: “Até a eclosão das denúncias contra o presidente Temer, em maio, tudo indicava que seria possível avançar no tempo de contribuição e idade mínima”, acrescentando: “No caso dos “privilégios adquiridos” por servidores públicos, a resistência usual das corporações de Estado tendia a barrar o alinhamento maior dos dois regimes previdenciários, mas esse é um processo longo”, escreve Nelson Barbosa.