Um dos cavaleiros mais experimentados nos acidentados páreos políticos é José Sarney. O retrospecto – um dos mais longevos do Brasil – é sobejamente conhecido. Em mais de 60 anos nas corridas eleitorais foi deputado, governador, senador, presidente do Congresso Nacional e comandou partidos. Como azarão foi presidente da República após a morte dramática de Tancredo Neves. Em um conselho ao então estreante na presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, Sarney, do alto da experiência da tribuna presidencial, disse que a governabilidade aconselha negociar toda a pista de cargos da República entre os apoiadores, exceto os puros-sangues da Polícia Federal, Receita Federal e Procuradoria Geral da República.
São currais estratégicos que o chefe-de-Estado não deve leiloar entre a tropa de aliados. Esses três celeiros, independente dos interlocutores e do feno ideológico, vêm sendo laçados pelos presidentes e fidelizados com disciplina equestre, com mais ou menos habilidade, com maior ou menor discrição. Ninguém renuncia ao controle dessas cancelas.
Jair Bolsonaro, o mais pangaré entre todos os presidentes do hipódromo Brasil, obedece cegamente ao adestramento e não se esforça em disfarçar a crina fascista, sempre eriçada. A cocheira da Receita Federal foi manipulada para tentar embaçar o trote ilegal do Senador Flávio Bolsonaro no escândalo de corrupção na Assembleia do Rio de Janeiro, no qual foi denunciado por surrupiar parte dos salários dos servidores, eufemisticamente carimbado de ‘rachacinha’. O controle da estrebaria da Polícia Federal, metamorfoseada em Gestapo bolsonarista, provocou a queda do cavalo do juiz parcial e incompetente, Sérgio Moro.
Hoje o galope policial é comandado pelos rebenques de aliados do capitão depois da primeira opção ter sido vetada no STF e de outras 5 mexidas no comando da PF. De tão arreada, até informações sigilosas de investigações da PF Bolsonaro já divulgou. Por esse motivo é alvo de outro inquérito. A PF também é veloz como um ginete para gerar inquéritos políticos e chicotear oponentes do capitão Bolsonaro. Na cavalaria tudo é rápido e mal feito.
No cocho da Procuradoria Geral da República, Bolsonaro acertou uma barbada ao nomear um procurador-chefe, cuja pronúncia do nome pode até ensejar alguma confusão fonética com estâncias de montarias e cavalgaduras. Aras, sem h, tem um retrospecto de proteção à cavalaria bolsonarista. Em 4 agosto de 2021, Bolsonaro divulgou, em uma transmissão ao vivo em sua baia no Facebook, a íntegra de um inquérito da Polícia Federal que apurava supostas invasões a sistemas e bancos de dados do TSE em 2018. O xucro golpista queria deslegitimar a urna eletrônica. Diferente do que afirmou Bolsonaro, o suposto ataque não representou risco às eleições daquele ano. Para Aras, o relatório da PF não seguiu os fundamentos constitucionais que dispõem sobre o sigilo das investigações policiais. Antolhado, Aras disse ainda que o inquérito não estava sob segredo de Justiça e não tramitava reservadamente dentro da PF. O inquérito, disse a Justiça Federal oficialmente, está sob sigilo. Bolsonaro cometeu outro crime. Aras bolas.
Aras é também chicoteado por não dar nenhum sinal de que Bolsonaro será denunciado ao STF. Os adversários podem tirar o cavalinho da chuva. O que ele faz são os procedimentos prévios, uma marcha morosa de sabotagem, exatamente com fez com o material da CPI da Pandemia, colocado em sigilo sem nenhuma justificativa. Um estranho segredo imposto a um conteúdo discutido publicamente com documentos e provas transmitidas ao vivo pelas emissoras de TV. Em agosto do ano passado, Aras escoiceou uma petição protocolada no STF por um grupo de parlamentares contra Bolsonaro.
A ação solicitava a investigação depois que o capitão utilizou a TV estatal para apresentar supostas provas de fraudes no sistema eleitoral brasileiro. No documento enviado à ministra Carmen Lúcia, o procurador afirmou que já existia uma apuração para investigar se houve crime nas falas do presidente em relação ao sistema eleitoral. Portanto, não haveria necessidade de outra investigação. Recentemente, a PGR também arquivou a investigação sobra interferência de Bolsonaro no Iphan por ter interditado lojas de outro matungo, o velho da Havan.
A PGR, através do vice-procurador-geral, Humberto Jacques de Medeiros, solicitou aos STF o arquivamento da investigação contra 11 deputados aliados a Jair Bolsonaro por relinchos antidemocráticos, que tramita nas mãos do rigoroso domador de mulas golpistas, ministro Alexandre de Moraes. Alguns rocins do capitão marcharam em ofensivas que pediram o fechamento do Congresso Nacional, do STF e a volta do Ato Institucional nº5, o coice mais autoritário da ditadura militar brasileira, onde até o sagrado Habeas Corpus foi suspenso. O pedido para investigar “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF” foi feito pelo procurador Augusto Aras. Mas na hora H, veio a marcha à ré da PGR pedindo o arquivamento e justificando que a atuação da Polícia Federal perdeu o objetivo da investigação, que deveria recair apenas em cima dos financiadores das montarias antidemocráticas.
Aras também engavetou todas as apostas de investigação contra Bolsonaro referentes a sua atuação pessoal e do governo federal durante a pandemia de Covid-19, envolvendo perigo para a vida ou saúde, violação de medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de recursos públicos e prevaricação. Ainda em 2020, Aras livrou a cara de Bolsonaro arquivando um pedido de subprocuradores para obrigar Bolsonaro a tirar as ferraduras do obscurantismo e seguir recomendações da Organização Mundial da Saúde. O procurador concluiu que a solicitação não tinha “cabimento” e que os integrantes do Ministério Público Federal deveriam ficar afastados “de disputas partidárias internas e externas”. “Os chefes dos Poderes Executivos em todas as esferas (federal, estadual e municipal) detêm liberdade de expressão para se posicionar sobre assuntos considerados relevantes para a sociedade, e não subordinam suas opiniões a organismos externos, principalmente considerada a dinâmica do avanço da epidemia de doença nova, que obriga a revisão de protocolos médicos com frequência, bem como a revisão de orientações gerais à população”, disse Aras.
O procurador também empacou na opacidade e foi contra a divulgação da íntegra do vídeo do estábulo ministerial do dia 22 de abril de 2020, célebre, entre outras, pelo zurro de Bolsonaro avisando que ia mexer na PF e não esperaria “foder minha família toda, de sacanagem, ou amigo meu”. Na mesma reunião o ex-ministro da Educação preconizou a prisão dos “vagabundos” do STF. Aras defendeu apenas a degravação dos trechos relacionados à interferência de Bolsonaro na PF. Segundo as acusações feitas pelo cavalo paraguaio, Sérgio Moro, a partir do segundo semestre de 2019, Bolsonaro passou por cangalhas políticas na PF. Inicialmente, o superintendente do Rio de Janeiro, Ricardo Saadi foi substituído pelo superintendente da Polícia Federal em Pernambuco, Carlos Henrique Oliveira Sousa. Saadi chefiava as investigações sobre o “caso Queiroz”. Diante da compulsão em trocar o condutor da carroça da Federal, Moro foi atropelado por Bolsonaro e levou uma queda feia: “Falei que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo.”
Em maio de 2020, o procurador se manifestou contra a apreensão do celular do presidente Bolsonaro. A solicitação havia sido feita por meio de uma notícia-crime apresentada pelo PDT, PSB e PV, no âmbito da investigação que apurava a suposta interferência na PF. Naquela época, Aras afirmou que cabia à PGR instaurar diligências contra o presidente perante o STF, não às legendas partidárias. “Quanto às diligências requeridas pelos noticiantes, como sabido, a legislação processual não contempla a legitimação de terceiros para a postulação de medidas apuratórias sujeitas a reserva de jurisdição, relativas a supostos crimes de ação penal pública”, afirma a manifestação.
“Cabe ao procurador-geral da República o pedido de abertura de inquérito, bem como a indicação das diligências investigativas, sem prejuízo do acompanhamento de todo o seu trâmite por todos os cidadãos.” Augusto Aras criticou as conclusões do relatório “Retrospectiva 2021”, da ONG Transparência Internacional, que apontou para um “alinhamento sistemático” da PGR com o governo Bolsonaro. Segundo o documento, há um “alinhamento sistemático da PGR com o governo Bolsonaro, com retração sem precedentes na função de controle constitucional dos atos do governo e desmobilização do enfrentamento à macrocorrupção”.
A blindagem quixotesca extrapola a proteção penal e transborda para a institucionalidade dos saltos golpistas. Enquanto Bolsonaro escoiceava a democracia e planejava uma quartelada no 7 de setembro, Aras expediu uma nota fantasiosa, um unicórnio, um verdadeiro chifre em cabeça de cavalo: “Acompanhamos ontem uma festa cívica com manifestações pacíficas, que ocorreram hegemonicamente de forma ordeira pelas vias públicas do Brasil. As manifestações do 7 de setembro foram a expressão de uma sociedade plural e aberta, características de um regime democrático”. Um grupo de 30 perplexos subprocuradores da República rebateu em outra nota as patadas golpistas de Bolsonaro. O tom da reação foi o oposto da “festa cívica” de Augusto Aras.
“Muito distante do que poderia ser considerada uma festa cívica comemorativa do Dia da Independência, tratou-se, na verdade de tristes demonstrações de desapreço aos valores fundamentais da democracia, que desonraram o sentimento patriótico de um inteiro país”, afirmaram os subprocuradores. Para o grupo, tratou-se de uma “marcha rumo ao obscurantismo, sombreada pela pregação da polarização e da intolerância”. No texto, os integrantes da PGR cobraram “atuação firme, serena e intransigente das instâncias competentes de controle e responsabilização no sentido de refrear os atentados ao Estado democrático de Direito”.
Aras sobe nos cascos quando é contestado e gosta de processar críticos (jornalistas, professores), esporear os adversários de Bolsonaro e escovar os aliados do governo. Arthur Lira, sentado sobre um paiol de mais 160 pedidos de impeachment, foi “desdenunciado”. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo marcou Lira com o ferro da corrupção. Uma propina paga ao deputado, disse ela, estava provada “para muito além de meras palavras de colaboradores.” Apenas três meses depois, Lindôra mudou o passo. Remeteu ao Supremo a “desdenúncia” e “desacusou” Lira. Apontou uma “fragilidade probatória” que não havia observado antes.
O jóquei do caso, o ministro Edson Fachin, estranhou o trote e argumentou que o Ministério Público não pode “desistir da ação penal”. Já quem está fora da estrebaria bolsonarista padece. O relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, teve uma denúncia “desarquivada” exatamente dois dias depois de apresentar o relatório incriminando Jair Bolsonaro. O desarquivamento foi apeado pelo pleno do STF.
O Ministério Público brasileiro tem um status constitucional invejável no mundo. Todas as garantias – vitaliciedade, inamovibilidade, autonomia administrativa, orçamentária etc – são únicas entre as constituições. A independência institucional, contudo, não está evitando que o MP seja, a todo tempo, encabrestado e utilizado como um cavalo de Tróia com surpresas devastadoras. No caso do ex-presidente Lula, as delinquências dos pivetes do Parquet de Curitiba foram denunciadas pelo fotochart da Vaza Jato. No atual caos governamental, o MPF é conduzido sob rédeas curtas, selado e politizado pelo presidente da República e por Augusto Aras. É um poder cavalar encilhado politicamente a partir do haras do Executivo. A Constituição e os constituintes idealizaram um MP épico, jamais hípico.