Por dar a última palavra nas mais variadas causas, todas as instâncias da Justiça sempre foram alvos de corruptos e outros bandidos poderosos. Entram nessa mira desde juizados em pequenas comarcas às mais altas cortes em Brasília. Há tempos, esse é um tema recorrente nos bastidores do poder e nas reuniões de pautas nas redações de jornais e revistas na capital da República. A promiscuidade entre juízes e escritórios de advocacia sempre foi do conhecimento geral.
Jovens advogados com sobrenomes ilustres desfilam em carrões importados e esbanjam dinheiro em diversões caras. Mal começaram a atuar profissionalmente e já ficaram ricos. Um sucesso raramente por talento precoce, mas pela desenvoltura com que circulam em rodas decisivas. É no acesso à caneta desde as menores repartições a altas instâncias nos serviços públicos que acontece a maior desgraça do país. É por essa via que as discriminações raciais, sociais, sexuais continuam se reproduzindo.
Políticos tidos como respeitáveis avaliam que um tico de corrupção é um preço aceitável na selva de pedra como as coisas funcionam no país. Se uma propina alivia uma multa por que não pagar? É por causa dessa mentalidade que o Brasil é um dos países em que a corrupção é mais rentável – seus valores astronômicos causam espanto no mundo inteiro. de Não há político, empresário e juiz que não condene isso. A questão de sempre é a diferença no tratamento ao ladrão barato e aos barrões da corrupção.
Quando eram mundos distintos, o establishment político e econômico achava natural, zero de reclamação. Longos tempos em que a impunidade de quem tinha dinheiro e poder era fava contada em alguma instância judicial. Até pelos infinitos recursos. O país cansou disso. As novas prerrogativas e obrigações da Constituição que nos resgatou a democracia possibilitou a procuradores, auditores, policiais, fiscais, juízes, jornalistas e cidadãos traçarem um novo rumo. Foram anos de aprendizado antes de pegar no tranco.
A ficha caiu por último na cúpula da Justiça. Por artimanhas legais e jogos de poder, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal foram transformados na garantia saideira da impunidade. O Mensalão e a Lava Jato pareciam ter rompido essa barreira. Não foi bem assim. Talentosos criminalistas que antes ganhavam fortunas em causas fáceis tiveram que suar a camisa. Fizeram bem o dever de casa. Passaram a difundir a versão tupiniquim da narrativa que distingue juízes que aplicam a lei dos que fazem “apenas” fazem justiça.
Políticos de todos naipes, enrolados nas investigações sobre roubalheira do dinheiro público, passaram a propagar essa mesma narrativa, vendendo a pilhéria de que quem chegou por concurso público a um dos elos do sistema judicial tem a tendência de criminalizar a política. Bolsonaro, Lula, Aécio Neves, Renan Calheiros e toda a galera do Centrão embarcaram nessa canoa. A principal vitória dos advogados da turma de colarinho branco foi a adesão do establishment político e econômico à tese de que juiz bom é o que apega a interpretações legais que os beneficiam — se a lei não dá essa brecha, muda-se a lei. É esse o espetáculo em cena nesse feriadão.
O enredo é impecável. Incomodados com as investigações da Lava Jato e de outras grandes operações contra a corrupção, os principais caciques políticos do país se uniram para pôr em prática a lição do talentoso Romero Jucá — o cara encarregado durante décadas de resolver no Senado os pepinos de todos os governos– da necessidade de “um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”. São anos de tentativas, geralmente camufladas — algumas deram certo, outras não. Impressiona na Justiça as decisões em plantões, feriados e períodos de férias de juízes. No Congresso é o que passa batido na vã filosofia de que em algum estágio será corrigido. O pouco caso e a desatenção sempre foram combustíveis da impunidade.
O ministro Celso de Mello, uma referência na história secular do Supremo Tribunal Federal, a partir de amanhã está aposentado. Foi ele quem mais deu relevância ao papel de decano do tribunal. Esse bastão agora é de Marco Aurélio Mello, nomeado ministro em junho de 1990 por seu primo Fernando Collor de Mello, então presidente da República. Marco Aurélio está magoado por não ter sido escolhido orador na despedida de Celso. Não foi uma omissão gratuita. São Mellos sem relações familiares e condutas bem distintas. Ambos são considerados garantistas. Curiosa é a mudança de devoção a eles no mundinho dos defensores de acusados de corrupção.
A caneta de Marco Aurélio Mello assinou algumas barbaridades na régua da justiça. Foi dele, por exemplo, o habeas-corpus ao banqueiro Salvatore Cacciola, protagonista de um dos maiores escândalos no governo Fernando Henrique Cardoso, que trocou a cadeia por uma vida bem mais agradável em Roma. Ele concedeu também habeas-corpus ao traficante Elias Maluco, o algoz do cruel assassinato do jornalista Tim Lopes, uma referência de integridade não só para a imprensa. Elias Maluco só não saiu da cadeia porque tinha outras condenações.
Nesse feriadão, a caneta de Marco Aurélio tirou da cadeia André Oliveira Macedo, o André do Rap, simplesmente o chefe de operações no tráfico de drogas internacional do PCC, hoje a maior quadrilha da América do Sul. De acordo com alguns advogados criminalistas, fez o certo, cumpriu a lei. Por essa ótica distorcida, não valem sequer regras comezinhas para todo e qualquer juiz. De acordo com a revista Cruzoé, assina o pedido de habeas corpus Ana Luísa Gonçalves Rocha, sócia de Ubaldo Barbosa no escritório Barbosa Advogados. Quem é Ubaldo Barbosa? Até fevereiro deste ano, ele dava expediente no STF como assessor pessoal do ministro Marco Aurélio. Detalhe: André do Rap foi condenado em duas instâncias a penas em prisão fechada que somadas passam dos 25 anos.
Como em todas as outras decisões, Marco Aurélio faz uma ginástica para se justificar. Fez birra com o presidente do STF, Luiz Fux, que agiu bem ao cassar sua liminar para soltar André do Rap, talvez sem eficácia pelo bandido já ter caído no mundo — dizem os investigadores que até um jatinho já o esperava em Maringá para tirá-lo do país. Moleza para quem surfou em Angra dos Reis e no Guarujá durante cinco anos como foragido.
Marco Aurélio tem razão em um ponto. O Centrão, com o apoio de toda a cacicada, virou pelo avesso o pacote de combate ao crime que ingenuamente Sérgio Moro apresentou ao Congresso. Caiu na toca do lobo. Ali, políticos investigados por corrupção fizeram a festa, orientados pelos ministros do STF Gilmar Mendes e Dias Toffoli, com a benção do presidente Jair Bolsonaro. Até eu me acho cansativo por sempre repisar essa história.
Mas são fatos. Tiraram o Coaf da sala, inventaram um tal de juiz de garantia, e legislaram em causa própria. Criaram uma regra de que prisões preventivas se não renovadas caducam em seis meses. Evidente que alguns se viram no lugar de Eduardo Cunha, José Dirceu, Antonio Palocci, Sérgio Cabral, Geddel Vieira Lima, Gim Argello e um monte de políticos, operadores e empresários na cadeia. Em nenhum momento se preocuparam com gente pobre esquecida em celas país afora. Sequer com a carga de trabalho de investigadores e juízes que levam a profissão a sério.
Um bom exemplo disso é o novo queridinho dessa turma, o desembargador Kassio Nunes Marques, festejado por todos por ter sido indicado por Bolsanoro para a vaga aberta por Celso de Mello. Em entrevista no ano passado ao Anuário da Justiça Federal, Kassio se gabou de sua produtividade por proferir mais de 600 decisões judiciais por dia. Se não tiver mágica esse cálculo é humanamente impossível. A exemplo de seu currículo acadêmico, vale conferir essa fantástica contabilidade processual do futuro ministro do Supremo Tribunal Federal.
Um dos patronos da desfiguração das propostas de Sérgio Moro — com certeza haviam pontos que precisavam melhorar, mas não piorar — é Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Ele defende sua cria sem nenhum pingo de vergonha. “Eu acho engraçado. Sempre se transfere para a política o desgaste e a polêmica. Por que a gente não cobra do procurador, independente que seja na primeira ou segunda instância, por não cumprir o papel dele? Ele é pago para isso, ele fez concurso para isso, jurou a Constituição para isso”.
Nessa cultura do vale tudo, a culpa é sempre dos outros. Ninguém faz autocrítica. Ninguém se considera responsável pelo roubo bilionário na Petrobras e em outras estatais, no metrô de São Paulo, nas escandalosas compras para um suposto combate ao novo coronavírus, e na farra das rachadinhas. Lula, Bolsonaro, Aécio Neves, Fernando Collor, José Dirceu, Romero Jucá, Renan Calheiros e as figuras menores do Centrão são unânimes na proclamação da própria inocência.
Por esse script que ainda engana muita gente, os bandidos são juízes como Sérgio Moro, procuradores da República, delegados da PF, auditores da Receita e do Banco Central, e a imprensa. Como a pandemia, alguma hora esse pesadelo acaba.
A conferir.