Para começo de conversa, esclareço que, como a imensa maioria de brasileiros de origem portuguesa, devo ser um judeu transviado, um “marrano”; diria Chico Buarque, um sefardita “predestinado a ser todo ruim”, cujos antepassados devem ter se convertido ao cristianismo por ordem, porrete e graça de Dom João III. Dito isto, vamos lá, então, ao que interessa.
Bolsonaro não esconde sua admiração pelos terríveis ditadores Alfredo Strossner e Augusto Pinochet. Eles eram simpatizantes do nazismo, mas Bolsonaro não é nazista. Os nazistas odiavam comunistas; eram homofóbicos e misóginos; achavam a arte contemporânea “degenerada”. Bolsonaro, idem, mas ele não é nazista.
A afeição de Bolsonaro pelos judeus, notadamente pelos sionistas, impede-nos de rotulá-lo como nazista. A essência do nacional-socialismo é a ideia de que o judaísmo – que, segundo Hitler, manipularia tanto o capitalismo financeiro quanto o “bolchevismo” (a maioria dos líderes comunistas que tomaram o controle da Rússia em 1917–1920 era formada por judeus) − deve ser eliminado por perturbar o desabrochar do domínio mundial da “raça ariana”.
Com isso, Bolsonaro não concorda. Se dependesse de Bolsonaro, todos os bolcheviques seriam trucidados, mas os financistas judeus, no seu juízo, devem merecer todo respeito e consideração. Foram decisivas as manifestações de repúdio do presidente do Congresso Nacional − que é judeu −, da Confederação Israelita do Brasil e do embaixador de Israel para que Bolsonaro defenestrasse Roberto Alvim, a quem, no dia anterior, atribuíra o epíteto de “o melhor secretário de Cultura” que o Brasil já havia tido.
Isso não faz de Bolsonaro um democrata. A ideologia de seu governo é autoritária, mas não é nacional-socialista. Aqui e acolá, nos recônditos da administração federal, podem estar incrustados admiradores do nazismo, mas o nazismo não é da natureza desse governo. O antissemitismo era visceral no nazismo; o governo Bolsonaro acolhe judeus sem problema algum.
A questão de fundo é que regimes políticos autoritários, até mesmo totalitários, podem dar guarida à comunidade judaica. A priori, não há incompatibilidade entre ser judeu e ser autoritário.
Albert Einstein e Hannah Arendt, por exemplo, consideravam o ex-premiê israelense Menachem Begin um fascista (Benjamin Netanyahu, amigo do peito de Bolsonaro, é seguidor de Menachem Begin). Por outro lado, a conduta do judeu ucraniano Leon Trotsky à frente do Exército Vermelho é criticada por seu autoritarismo.
O fio condutor da ideologia do governo Bolsonaro pode, porém, ser encontrado na terra natal de Hitler, a Áustria, no chamado “fascismo austríaco”, que ali floresceu antes da anexação à “grande pátria germânica”, em 1938. Hitler devotava-lhes uma raiva incontida porque não eram antissemitas.
Os maiores expoentes do austrofascismo foram perseguidos por Hitler sem dó nem piedade: Engelbert Dollfuss foi assassinado e seu sucessor, Kurt Schuschnigg, foi enviado a campos de concentração, onde esteve várias vezes confinado em solitárias. Só foi libertado depois da queda do Terceiro Reich, em 1945.
Os fascistas austríacos eram defensores ardorosos da Igreja Católica. Hitler a reprimiu ferozmente, especialmente após a ampla divulgação, em todas as paróquias alemãs, em 1937, da circular “Com Preocupação Ardente”, editada pelo Papa Pio XI.
Os fascistas austríacos não defendiam a intervenção do Estado no domínio econômico, a não ser para reprimir, fortemente, as reivindicações de socialistas e sindicalistas que impediriam o livre funcionamento dos mercados. Pontificou no governo austrofascista de Engelbert Dollfuss o economista ultraliberal Ludwig von Mises, ícone de outro famoso integrante da escola austríaca de economia: Friedrich Hayek, que era judeu.
Quem quiser entender melhor a concepção de mundo que movia os fascistas austríacos não pode deixar de ler os três volumes de “Law, Legislation and Liberty”, de Friedrich Hayek. Hayek é referência para Paulo Guedes, que, aliás, já serviu a Pinochet, nos tempos em que seu professor e amigo de Hayek, Milton Friedman, judeu, prestava assessoria à ditadura militar chilena. A propósito: Ludwig von Mises empresta o seu nome a um instituto, em cuja filial brasileira o deputado Eduardo Bolsonaro diz ter feito um curso de pós-graduação em economia.
Engana-se quem pensa que há uma cacofonia entre uma corrente liberal e uma corrente autoritária no governo Bolsonaro. Há vasos comunicantes entre elas. De toda maneira, valendo-nos das palavras do Papa Pio XI, devemos ter uma preocupação ardente com os desatinos desse forte defensor da civilização judaico-cristã, chamado Jair Bolsonaro.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG