Até outubro, muita coisa pode mudar. Mas, pelo menos por enquanto, há muito mais semelhanças entre a atual corrida presidencial e a de 1989 do que pode supor a lembrança dos bigodes de José Sarney. E há muitas dessemelhanças também. A pesquisa do Instituto Ipsos e do Jornal Estado de S. Paulo, divulgada nesta quinta-feira (23), o Barômetro Político, é mais um fator a acentuar essa semelhança. Mas a apontar também as dessemelhanças.
Já se falou sobre isso por aqui. Em 1989, o Brasil era governado por um presidente que tinha sua legitimidade questionada. Tinha sido o presidente do PDS, o partido que apoiava a ditadura militar, e tornou-se, na aliança que se formou para a vitória no Colégio Eleitoral, o vice de Tancredo Neves. Na véspera da posse, Tancredo adoeceu e foi internado no Hospital de Base. Quem tomou posse foi Sarney. Tancredo morreu e Sarney se tornou o presidente. Chegou a crescer em popularidade quando fez o Plano Cruzado, mas a tentativa de estabilizar a economia deu com os burros n’água. Uma inflação descontrolada de mais de mil por cento ao ano jogou sua popularidade no chão e fez com que Sarney chegasse na eleição com todos os candidatos à sua sucessão contra ele.
Tancredo e Sarney ainda foram eleitos pelo método da ditadura: o Colégio Eleitoral. Em 1989, teríamos a primeira eleição direta após o fim do regime dos coturnos. Seria, então, o momento inaugural do retorno da nossa democracia.
Talvez motivada por essa ideia, a sociedade passou a enxergar a necessidade de escolher um nome novo, fora do universo político que habitou o país nos anos de exceção. Algo que afetou consideravelmente os candidatos dos dois maiores partidos: o PFL e o PMDB. Suas apostas, Aureliano Chaves e Ulysses Guimarães, eram muito identificados com esse universo. Aureliano tinha sido o vice do general João Figueiredo, rompido no mesmo processo de aliança que tirou da ditadura o apoio de Sarney. E Ulysses acabou sendo vítima do fato de ter sido o nome que fez a oposição ao regime. Em vez disso ser considerado, foi interpretado como uma representação do velho, algo que a sua idade só reforçava. O desempenho dos dois foi pífio.
Despontaram ao final dois nomes que a sociedade enxergava como novidade. Luiz Inácio Lula da Silva era o comandante de algo que então ainda era visto como uma nova proposta de esquerda, de movimentos sociais que despontaram e se organizaram nos últimos tempos da ditadura: sindicatos, ala progressista da Igreja, organizações da sociedade civil, etc. Problemas nessa nova organização de esquerda só vieram a ser verificados muito depois, talvez apenas depois que o PT chegou ao poder, vários anos à frente. E Fernando Collor foi alguém que o eleitorado identificou como mais novo ainda: jovem, bonito, empreendedor, decidido. Na verdade, foi quem melhor enxergou esse cenário: incorporou o marketing à política para criar uma embalagem que escondia o que havia de tradicional no seu perfil – tinha sido neto de um ministro de Getúlio Vargas, filho de um senador que matou uma pessoa dentro do plenário do Senado, de uma família da elite alagoana. Com grande colaboração da imprensa, que ajudava a esconder esses defeitos do seu perfil, acabou sendo eleito.
Até que a disputa se polarizasse entre Collor e Lula, diversas tentativas de alternativa foram feitas. Balões que não se sustentaram até a eleição. Leonel Brizola, do PDT, liderou as pesquisas durante bom tempo, e só deixou de ir para o segundo turno, sendo ultrapassado por Lula, muito perto da eleição. Afif Domingos, do PL, também teve seu momento, passando uma ideia de político moderno, de uma nova direita – os militares eram nacionalistas, defensores da reserva de mercado e da estatização, Afif era a direita liberal, ligada à livre iniciativa, à meritocracia, etc. Ronaldo Caiado flertou com os grupos mais conservadores. Mário Covas, do PSDB, tentou uma aproximação com grupos de centro-esquerda e empresariais. E houve até uma tentativa de emplacar uma celebridade da televisão: Sílvio Santos, que comprou uma legenda e acabou tendo sua candidatura impugnada.
Neste exato momento, temos um presidente da República cuja legitimidade há muita gente que conteste. Também com popularidade baixa. A inflação não é um problema no momento. O que há é uma recessão tremenda que se tenta contornar. Até agora, não há candidato na disputa que se identifique com ele ou com seu governo. Todo o processo de contestação da política tradicional a partir das denúncias de operações como a Lava-Jato leva a um sentimento de necessidade de refundação da nossa democracia. Que pode gerar na sociedade um sentimento de busca de nomes desatrelados da política tradicional.
O maior ponto de dessemelhança talvez seja Lula. Hoje, ele já não é mais uma novidade como em 1989. É um político testado e experimentado em um partido a essa altura também testado e experimentado. Lidera as pesquisas porque conquistou apoio de parte do eleitorado em um movimento personalista bem típico do nosso continente (getulismo, brizolismo, peronismo, etc). Um eleitor que não acredita ou que relativiza as acusações que existem contra ele. Não se sabe, porém, se os problemas na Justiça permitirão que ele chegue na disputa em outubro.
Há um outro ponto de dessemelhança. Em 1989, a polarização Lula/Collor só aconteceu aos 45 minutos do primeiro tempo, na definição dos nomes que iriam para o segundo turno. Agora, essa polarização acontece agora, faltando quase um ano para a eleição. E os balões que agora vão surgindo tentam evitar que a polarização agora se consolide entre o mesmo Lula e Jair Bolsonaro. Até porque seria a consolidação da guerra e dos ódios que hoje habitam as redes sociais e nosso ambiente.
Já houve João Dória, Henrique Meirelles e outros. Agora, o balão da vez é o apresentador Luciano Huck, a celebridade que substitui neste pleito o Silvio Santos de 1989. O marido de Angélica, criador da Tiazinha e da Feiticeira, destaca-se na pesquisa do Instituto Ipsos, que não é uma pesquisa eleitoral, mas de percepção do cidadão quanto ao perfil do político. Como aconteceu antes com o prefeito de São Paulo, Dória, e o ministro da Fazenda, Meirelles, Huck é também um nome que se tenta emplacar como opção de quem não deseja a volta de Lula nem a radical imprevisibilidade que pode significar uma vitória de Bolsonaro.
Vamos precisar ver agora até onde sobe o novo balão. De qualquer modo, há uma terceira dessemelhança do cenário atual com relação ao de 1989. Os meios de comunicação não estão com Bolsonaro, como estavam com Collor. Pelo contrário, ele já foi capa de duas revistas que o apresentaram como uma terrível ameaça. Mas, nesses tempos de internet e redes sociais, meios de comunicação já não têm a mesma influência que tinham em 1989. Busca-se um nome para evitar a guerra que deverá ser uma disputa de Lula contra Bolsonaro. Nessa busca, os balões vão subindo…