Extrema-Direita: elementos de legitimação

Amplos setores médios e populares são abalroados pelo continuado estado de stress institucional. Nessa fadiga democrática há parte de responsabilidade das esquerdas tradicionais e "revolucionárias".

Revolução Francesa 1789

Conservadores ou direita mudam desde os girondinos na Revolução Francesa. Ao longo dos séculos XIX e XX liberais moderados defrontam-se cada vez mais com visões e posturas não democráticas, aqui definida direita ultraconservadora, ou direita da direita. Esta é recorrente na história, diante das situações-limitrofes das velhas e novas contradições que demarcam os graus de luta social para o campo liberal em seu tumultuado matrimônio com o capitalismo.

Por certo, a esquerda não passa ao largo de um turbilhão de mutivariedades de mudanças, sendo parte desse movimento e interagindo naquele processo social de vários modos. Neste pequeno artigo o foco é na primeira, admitindo-se a confluência da segunda para a condição da direita mais extrema em seus êxitos e desventuras.

Dificuldades estruturais desafiam liberais e socialistas em compatibilizar ordem social e mercado numa sociedade na qual há evidentes restrições estruturais para o avanço concreto de conquistas individuais e coletivas. No caso da formação social brasileira tudo é agravado pelo seu caráter tardio e semiperiférico. Tensões sociais (por força do déficit de distribuição de direitos) não resolvidas socialmente não logram conter conflituosidades no quadro jurídico liberal, mormente onde a precária cultura política comumente dissocia ideais e práticas sociais.

A noiva preferida do estado de direito moderno, a tão esperada segurança jurídica desafia juristas liberais (e mesmo progressistas) mais ou menos românticos a dar explicações diante dos curtos-circuitos entre ordem jurídica e ordem social. Direita liberal e esquerda democrática encontram-se, nesse sentido, atropeladas pelos ventos conservadores mais radicais impondo reiterados blackouts institucionais. Ambas veem incrédulos a institucionalidade jurídico-política sendo esvaziada de seu potencial moderno.

O filósofo Karl Marx – Foto Wikicommus

Juristas seguem ou tentam seguir na mediana o beabá de Kant, conscientes ou intuitivamente, com acentuadas dificuldades de admitir uma pitada de Marx na geleia da arena política. Revoltam-se com certa razão contra os ímpetos autocráticos dos populismos arquiconservadores, mas carregam a ilusão de um casamento inquebrantável (e eterno) entre mercado e democracia liberal. Portanto, permanecem em grande medida surdos e mudos com relação aos interesses do poder e do dinheiro que fundam e dirigem o mundo. Como se a retórica da Lei igual para todos, constituindo o real no sentido positivo de progresso social, pudesse ser dotada de uma autonomia (ou potência) capaz de fazer ajoelharam-se os os grandes grupos que de fato a delimitam e condicionam.

De todo modo, a direita da direita não nasce da cabeça de um líder. Sua oportunidade histórica resulta de situações estruturais e contingenciais nada simples. Nelas líderes da extrema direita vão surgindo eleitoralmente em quase todos os países, expressando uma tendência de visão de mundo sincrética, vale dizer, capaz de amalgamar-se em estratos sociais diversos, confundindo-os e obtendo uma legitimidade mínima no poder. Nessa pertinência difusa encontra-se significativo e crescente apoio popular, por mais paradoxal possa aparecer.

Atribuir responsabilidades por algo que resulta do multilateral e do multicultural reduz o campo problemático e, pior, o oblitera. Comuns nessa direção as projeções intelectuais (de culpa?), nas quais uma dada classe responde isoladamente pela desordem geral. Um exemplo de tal amputação metódica (e intelectual) é a corrente idealização das “classes médias” como o grande mal.

A “dialética” de mão única é oferecida por certos intelectuais para os setores médios como o bode da vez para acentuar o nosso caráter “inautêntico”, “contrarrevolucionário”, desserve a propósitos de um conhecimento crítico, servindo ideologicamente e tortamente ao mercado com sua vanguarda transformista. O foco é outro movimento – no campo da direita, no qual pode-se melhor situar as ambivalentes posições sociais de classes e setores de classes sociais, com ênfase nas escolhas políticas.

A guinada de setores eleitorais da direita para a extrema direita é muito ampla, abarcando as classes sociais em todos os seus segmentos, diferenciados social e culturalmente. Ela decorre de constrangimentos/sofrimentos individuais/grupais cumulativos e/ou emergentes, presentes em contextos históricos precisos: de crises (reais ou fictícias), agora não mais facilmente justificadas nos termos ideológicos herdados da Guerra fria do século passado.

Ulrich Beck – Foto Acervo pessoal

Algo precisava mudar nas formas e conteúdos da relação da racionalidade jurídica com a política institucional em tempos atuais de transformações aceleradas. Nela o planejado perde parte de seus espaços diante das suas consequências colaterais. Estas são atravessadas por uma acumulação volátil galopante diante da fragmentação cultural sem precedentes, impactando-as nos seus movimentos reversos. O que Ulrich Beck define como metamorfoses formando uma grande Metamorfoses deve considerado (in A Metamorfose do Mundo). ,

Contextos adversos percebidos por milhões de seres humanos nas suas vidas pública e privada atestam progressivo esgarçamento social das condições da vida cotidiana: é o pano de fundo da transmutação ideológica em curso. Ela evidencia e sinaliza fissuras ou rupturas em dimensões importantes da representação d’antes internalizada como naturais numa massa considerável de indivíduos dispersos em todas as classes sociais. Dispersão que é fragmentação decorrente de exclusões e inclusões no trabalho, no consumo, de vivências, inclusive da cultura e da subjetividade. Ela significa estado de incertezas, mesmos aos que ainda logram certos reconhecimentos. Tudo é efêmero e se esfuma no ar. De Baudelaire a Marx essa sensação de um progresso etéreo e um tanto armadilhoso está dada.

Manifestação na Esplanada dos Ministérios

De fato, democracia, família, política, religiosidade veem-se “desmoralizadas” enquanto instituições. Novos formatos em gestação da identidade em muitas esferas da vida sofrem diante de um futuro incerto. É o ambiente de desamparo e desespero aquele que permite a um contingente de indivíduos ceder a discursos mais radicalmente conservadores. Milhões de seres humanos são seduzidos por tais retóricas radicalmente saneadoras, tornando-se disponíveis à política menor do tudo ou nada.

Uma das condições e alcances dessa política de limpeza geral (tudo é lixo quando visões e práticas sociais dissociam-se do horizonte cultural de dado grupo conservador) resulta da proliferação da auto ilusão de uma nova ordem restauradora sob comando de um líder autoritário na qual a ideia de nova ordem não se reporta mais à antiga díade legal/legítimo de cariz liberal. Esta implicaria num jogo com regras respeitadas junto a cidadãos dispostos a jogar. Esta ordem parece não mais existir, ao menos com a mesma efetividade imaginária do passado.

Roger Caillois

Guarda razão nesse sentido descrito no parágrafo anterior Roger Caillois (Os jogos e os Homens) ao registrar que quando “ao deixar este jogo, ele simplesmente tornou acessível o estado natural e permitiu novamente qualquer exação, astúcia ou resposta proibida, que aa convenções tinham justamente como objeto banir de comum acordo. O que chamamos jogo aparece desta vez como um conjunto de restrições voluntárias, aceitas de bom grado e que estabelecem uma ordem estável, por vezes uma legislação tácita em um universo sem lei”.

Trata-se de uma nova efetividade espontaneamente forjada de efetividade não da Lei escrita possível numa identidade mínima possível entre imaginário (histórico) e simbólico (inconsciente), mas à daquela forjada no temerário terreno (ou situação) do natural e bélico, instintivo, na qual a Lei exsurgida no desencanto e nas promessas messiânicas aproveita-se do mais primitivo móvel do estado de natureza. Eis a formação do campo cultural desintermediativo pela via da política mínima na qual a imposição da vontade geral atende à diretiva autoritária, vocacionada a comandos diretos, dissimulando ao máximo a violência na formação/indução da subjetividade já viciada no ambiente regressivo.

Campos propícios à novidade das pautas da nova extrema direita alicerçada numa cultura do político mínimo para um poder delegado máximo é a tendência. Uma tendência exterminadora da dirritace da esquerda tradicionais. Ela opera como um bálsamo, uma esperança contra a “desordem” em favor de uma ordem na qual a nova Lei legitima-se como uma gigantesca Lei quase-natural, sobreposta à estrita ideia moderna de grundnorm kelseniana (Teoria Pura do Direito). Essa Lei quase- natural funciona como uma espécie de metanorma fundamental slno sentido de nova metanormatividade. Um natural vale-tudo “consentido” numa disputa ou luta sem pesos e regras, a não ser a das corporações de mercado. Como se chegou a esse estágio de barbárie?

Trata-se de uma situação silenciosamente anunciada no crepúsculo da modernidade cativa de suas modernizações. Ela condiciona e potencializa, majoritariamente, em amplos setores sociais, uma infinidade de percepções de perigo iminente para modos de vida ameaçados nos costumes e tradições, em decorrência de novos padrões de vida, a exemplo do pluralismo afetivo-sexual bem conhecido no que se toma como movimento identitário. Também esses grupos enfrentam a ambígua emergência de situações embaraçadas, misturando: a) a violência externa reativa das forças sociais segregativas tradicionais; b) os problemas internos de compatilização de pautas não binárias, nada fáceis; c) e a tendência à atração por pautas econômicas da direita da direita.

A curiosidade ou “paradoxo” dos desdobramentos por vezes reacionários das ações coletivas pós-modernas talvez ganhe sentido histórico na busca dos critérios de legitimidade da reinvenção da ideologia de ultradireita atual e no modus da ultradireita agir muito além de um campo pretensamente da direita. Em vários países europeus amplia-se a agenda de preconceitos com as questões de gênero e é comum a luta fraticida entre alguns de seus grupos.

Surpreendentemente a nova direita não esconde a gigantesca aversão ao público LGBTQIAPN+, embora parte deste público a apoie na agenda econômica, como afirmado acima, em outras. É o caso do anti-imigracionimo dos regimes eurocéticos de parte da Europa, na qual as escolhas extrapolam o campo direita/esquerda. Milhares de cidadãos comumente alinhados nas pugnas socialistas são simpáticos ao endurecimento nas políticas de imigração.

Resumindo, a crescente parcela de legitimidade da extrema-direita acima mencionada converge em várias regiões do mundo segundo interesses diversos (e adversos), expressando uma unidade mínima possível, a da esperança de um confuso resgate do que julgam passado nostalgicamente de ordem ou de paz.

Mas a “nova paz” vai escapando do modelo conspirativo contra os avanços sociais do estado de direito liberal como ocorrera nos séculos passados. Naqueles séculos a cada reconhecimento de direitos individuais e sociais reagiam radicalmente os conservadores mais recalcitrantes às bandeiras liberais. Hoje atacar o estado de direito não é mais uma necessidade insuperável. No imaginário político a cogência de suas instituições foram minadas. A perda da confiança abre as portas para inúmeras desintermediações.

Seres humanos distribuídos em toda a pirâmide social já não guardam mais o mesma confiança nas instituições do estado constitucional. A desconfiança nas organizações como se encontram, desacreditadas, parecem ensejar um voto de confiança quase às cegas, para milhôes de seres humanos, nas formas delegativas populistas de poder, tendendo à autocracia. Mais resultados econômicos e sociais e menos retórica política e ideológica parecem nos bordões do ultraliberalismo.

Todo esse quadro social é possível em tempos de dificuldades afetivas e cognitivas resultantes do abalo no aparato psíquico, vale dizer, por força dos consideráveis graus de dissolução do imaginário social, ao ponto de abalar as estruturas simbólicas mais primitivas e naturais dos seres humanos. Tal processo implica num desacoplamento mínimo entre ordem (Lei) do Homem e ordem (Lei) primitiva dos animais. Implica numa autodestituição contratual seguida se uma renomeação da reprodução natural cuja seletividade proporcionada pela cultura e ciência pode ter na eugenia nazista somente um indicativo insignificante diante da grandeza dos que desejam um mundo perfeito.

Bolsonaristas: Família, à Pátria e Deus – Foto Orlando Brito

Repetindo, a regressão geral é de tamanha proporção ao ponto de abalar as estruturas simbólicas da percepção psíquica constitutiva da sociabilidade básica dos animais, sobretudo dos mamíferos. Seres humanos dentro desse quadro, jamais esquecer esse “contrato natural”. Por detrás do apelo à família, à Pátria e Deus, por mais cínicos possam ser em suas máscaras e delírios. Neles podem ser encontrados os indícios de fortes rupturas culturais com os territórios da vida privada, pública, material e espiritual, ameaçando a reprodução natural. A direita da direita resgata nesse terreno movediço sua nomeação e ação. Mas não somente ela.

Há sempre algo mais à direita da direita da. A extrema direita próxima à propostas nazifascistas obedece, na forma inconsciente ou racionalizada, abrigada em teses econômicas e políticas “radicais”, à essa irracionalidade primária de eliminação do político como campo intermediativo, porque contrário ao seu modo de ver o mundo com sua hierarquia de predadores e presas. Exterminar os inimigos que invadem ou podem invadir seus territórios – físicos e simbólicos, é algo que instintivamente marca do estado de natureza, reconfigurando o animal-Homem, pois que a cultura tem o poder de transfirmar-se no corpo biológico.

A tão reivindicada paralisia afetivo-cognitiva mencionada acima nos temos metamórficos permite uma re-ideologização na qual estado mínimo, por exemplo, torna-se uma necessidade, a de contraposição ao estado social tomado como defasado (hipertrofiado, de alto custo, ineficiente). Eis o espaço vazio (?) para as pautas extremadas. Da parte da direita, ampla e em ascenso. Da parte da esquerda, restrita e limitada, pois estabilizada em formas arcaicas de interação para convencimento de seus possíveis destinatários. A atração ou não de eleitores responde à fragmentação geral (com vetores muitos) e ao ambiente de retrocesso social. Elé a quase todos atinge.

Briga entre apoiadores de Bolsonaro e Lukla – Foto Reprodução

O parágrafo seguinte pode doer para a esquerda tradicional, quando estas percebem o empoderamento da ultradireita desconectada de um jogo no qual algozes e vítimas apontam para o eterno retorno a um empate bárbaro, ou de atendimento de uma outra Lei que não as do estado de direito. Até por que este já tenderá á sofrer sob a força da Lei “irracional”, pois racionalizada. Não é observável que bolsonaristas e lulopetistas por regra se odeiem e se tomem por vermes? Seres inferiores desprezíveis, a serem contidos, anulados, exterminados no limite?

A base da regressão na qual a extrema direita se origina e se retroalimenta é o medo, mesmo o pavor, face à progressão da insegurança e da violência. Dissolve-se de certa forma nessa condição-limite de desterritorialização física, imaginária e simbólica, o conceito abstrato de sociedade como sociabilidade.

Vladimir Lenin

Num olhar mais restrito, dilui-se a ideia de sociedade de classes, de proletariado, por consequência, agora também irmanado regressivamente na aposta ainda não superada, em soluções saneadoras (Lenin pode sim sair do túmulo, como o Outro extremado para conter e destruir a Peste). Afinal, o Estado no melhor sentido hegeliano foi traído pela involução histórica – e por suas vanguardas, possibilitando os ovos da serpente. Serpentes e seus ovos devem ser destruídos em nome da Razão histórica, mais uma vez, ressuscitada. É o outro lado regressivo. A parte do fermento da esquerda de direita no bolo da barbárie. Fecha-se o parêntese e volta-se à direita da direita e seu Direito.

No século XXI o escopo da direita de direita é usar o estado de direito contra ele mesmo. É dizer, não o eliminando, mas mutacionando-o, fixando a legalidade da exceção dentro do próprio estado constitucional, ressignificando toda a pirâmide kelseniana, em grande medida. Um pouco por aí a reflexão de Giorgio Agamben (Estado de Exceção).

Alexandre de Moraes – Foto Nelson Jr./ASCOM/TSE

O que pressupõe a vulgarização de dada escolha hermenêutica calca-se numa ressignificação ou falso redutor, o da decisão possível dentro de narrativas em guerra, ou seja, diluidora de qualquer verdade ou congruência entre meios e fins. A excessiva politização no sistema judicial resultande da polarização politica iguala, não raramente, decisões de Alexandre Moraes e aquelas de juízes lavajatistas, a exemplo de conhecidas decisões combinadas de Sérgio Moro e carimbos de legalidade à exceção da potência do TFR4. Como assim?

Uma silenciosa naturalização da hermenêutica politicamente pedagógica (alternatividade no maior dos seus avessos) diante de fatos diversos, a exemplo do 8 de janeiro de 2023, não parece servir de forma inquestionável à boa intermediação social (e à surrada aposta na segurança garantista), mas à desintitucionalização da ordem social, quando divide juristas, políticos e sobretudo a sociedade, ampliando suas dúvidas (com progressão da perda de confiança no sistema judicial) diante de decisões que sobrepôem o interesse e a afirmação do estado de direito(?) ao dos indivíduos e do próprio Direito constitucional.

Ademais, as disputas jurídicas entre corporações que perfazem o sistema judicial dão a impressão de responder à escolhas racionais, e não o são, necessariamente, diante da crescente contingência regressiva que a todos envolve. Sem contar que a reprodução burocrática das corporações judiciais em tempos birutas ajudam a consolidar interesses particulares (daeuelas organizações) mais nos seus meios, em detrimento dos fins institucionais republicanamente esperados. Uma das consequências da autopoiésis da modernidade juridica tardia no seu avesso é uma certa naturalização de caráter mais geral de um sistema de Justiça distanciado das reais demandas sociais, fato despotencializador da República.

Já não se trata mais de deslegalizar o estado de direito ou na busca de conter a legalização de novos direitos humanos, como ocorreu nos três séculos de luta social(cf T.H. Marshall, Citzenship and Social Class), nos séculos XVIII, XIX e XX, quando as reações expressavam as dificuldades de governo na nomeação e inscrição de novos direitos fundamentais, precisamente. Hoje o atropelamento da modernidade jurídica é mais sutil, pois que a racionalidade jurídica vai assimilando as omissões de socorro como parte do direito dos homens públicos à novas formas de eficiência do Estado. Jamais este foi tanto privado.

Agora no século XXI opera-se a artesania da legalização das exceções por dentro da ordem jurídica com um contorcionismo garantista no seu contrário original. Afinal, cidadãos em número nada desprezíveis e por muitos motivos, fazem pouco caso de instituições que julgam não mais servir para grande coisa. Tudo em nome, paradoxalmente, de uma San-grilá roubada, para muitos, ou de um novo paraíso de regulação espontânea sonhado para o futuro de um indivíduo livre das heteronomias de um emaranhado de Leis “atrapalhando a vida dos indivíduos”.

É o que confere força para a direita liberal pautar a política em parâmetros culturais perdidos ou esquecidos. Sua paralisia cognitiva ainda permanece, ampliando o seu déficit de ação política. Dai a ação da extrema direita de hoje, operando contra o estado de direito na exata medida em que o reconfigura. A segurança jurídica agora obedece à critérios mais eficientes na relação da Lei com o Poder, dos que mais podem e legislam fixando as narrativas, jurisprudências e diretivas econômicas. Apoiados numa carência imensa de umpúblico extenuado com anomias de todos os tipos e do controle e uso de altas tecnologias para a desinformação.

O ultraliberalismo é somente uma faceta – da repaginação ideológica, já conhecida na história, na economia e na política, da extrema direita. Ela indica na superfície a ação para reduzir a burocracia do Estado em suas dimensões coletivas hipertrofiadas ou julgadas ineficientes, como restritivas e onerosas à liberdade de indivíduos na livre iniciativa e no próprio exercício da vida comunitária.

No fundo a mutação neoliberal neste século responde a um projeto mais profundo de poder em tempos de imensas crises dos capitalismos, visando recompor em tempos de financeirização e decomposição da relação capital/trabalho, o domínio político, vale dizer, cultural e geopolítico.

A direita liberal mais bem intencionada dos séculos XIX e XX , se obteve algum sucesso nos países ocidentais contendo os ventos da ultradireira, não logrou perceber a força desintegradora (revolucionária) do Capital em termos acumulativos. Deu no que deu: uma financeirizacao canibalizadora de mercados. E a subsunção dos Estados Nacionais a grupos restritos que comandam as moedas e seus fluxos.

Há na extrema direita do século XXI algumas novidades. Para começar, uma ampliação de sua agenda na recepção social. É uma projeção bem idealizada de outras demandas sociais e expectativas (implicando as classes subalternas) cuja dimensão é tão abrangente e ambígua, quanto confusa e contraditória, ao ponto de permitir, sob discursos superficiais e tautológicos, uma aproximação de setores radicalmente heterogêneos em termos de inserção ocupacional e salarial, no consumo e na cultural, de uma pauta política mais à direita do que já era.

O anticomunismo primário retornou num tempo da máquina de moer sonhos emancipatórios chamada “Revolução Passiva”, um exemplo da recuperação ideológica diante do féretro do socialismo de governabilidade. A sociedade é muito maior que intelectuais, e que intelectuais marxistas. Parcelas significativas da população acreditam, por exemplo, que o governo lulopetista vai permitir a ocupação de parte de suas residências para fins de abrigar seres humanos carentes do direito humano de moradia. A direita mais aloprada crê que comunistas socialização até, pasmem, o anarquismo sexual. E por aí vai…

Amplos setores médios e populares são abalroados pelo continuado estado de stress institucional. Nessa fadiga democrática há parte de responsabilidade das esquerdas tradicionais e “revolucionárias”.

As esquerdas tradicionais tropeçaram nas próprias apostas no decisivo passo do transformismo, ou decisão de tentar compor e “domar o capital”. Foram engolfados por tudo que a promiscuidade da lex mercatoria implica e exige. A esquerda revolucionária, por sua vez, como regra, parou no tempo dando a sensação de ser uma esquerda fora da sociedade ou de algo inexistente no real. Não há ideia capaz de incidir no real se não se apresentar como doutrina, e doutina capaz de atingir as consciências dos indivíduos.

Pirâmide social

Na diferença social gritante presente na pirâmide social está dada a possibilidade de reconfiguração da defasada retórica das lutas por poder. À retórica a serviço do capital volátil, apelando para valores conservadores e à xenofobia, como maneiras de generalização de expectativas e soluções pragmáticas calcadas na indústria da desinformação, deve-se contrapor uma nova retórica das esquerdas . Mas o foco é a retórica do campo ultraconservdor.

A bem da verdade a direita extremada aproveita-se dos impasses históricos da direita tradicional, pois ambas foram drogadas pelas consequências das diferenciações e segmentações presentes no mercado, na cultura, no consumo e nos costumes. A extrema direita defronta-se com esse “caos” da fragmentação social que a apavora, capitalizando politicamente na medida em que se apresenta como a grande novidade no xadrez da política, o que procede.

A análise das agendas partidárias de ultraconservadores indica o avanço no cenário mundial da direita para a extrema-direita e desta para uma extrema direita quase fascista, senão nazista. Esse movimento vem se dando desde o início do século, na América do Sul e na Europa.

Emmanuel Macron

Mais recentemente com a continuidade de governo na Hungria e na Turquia. Em países democráticos ela chegou ao poder em 2022 na Suécia e na Itália. Na França Mariane Le Pen empurrou Emmanuel Macron para a direta mais à direita. Na Polônia, Alemanha, Austria, Espanha, a extrema direita se nao ganha, cresce a cada eleição. Suas pautas são anti-imigratórias (pasmem, com grande apoio das esquerdas tradicionais (Adam Przeworski, a Crises da Democracia), contra a população LGBTQIAPN+ ; além da rejeição ou críticas à comunidade europeia.

Trata-se de processo social de fortalecimento da ideologia ultraliberal e da participação da direita extremada das esferas do poder de Estado (mesmo minoritários, crescem e participam de colisões governamentais). Essa condição da extrema direita realizando o receituário neoliberal mais radicalmente dá-se dentro da regressão social ampla, graças à sua reiterada capacidade de produzir uma retórica da simplificação radical dos problemas, via desinformação e banalizando de falsas soluções.

As forças dos interesses da ultradireta configurada na ideologia ultraliberal coincidem com visões de mundo de milhões de seres humanos apavorados por fantasmas e pesadelos, sendo reconhecidas no senso comum e muito próximo ao comum mais Comum da sociabilidade. Esse Comum mais conum é aquele presente no limite do imaginário institucional racional desacreditado e o simbólico inconsciente irracional creditado à líderes autocráticos.

O campo para líderes populistas autocráticos com propostas messiânicas de uma nova ordem possibilita e legitima uma forte capacidade de pautar a política. Essa nova proposta de ordem afasta-se da racionalidade normativa moderna e suas instituições e se aproxima de uma política com ações diretas, dispensando mediações em atenção à processos decisórios mais apropriados à eficiência, vale dizer, à competência de impor decisões seletivas.

Decisões de cima para baixo e anti-modernas tornam-se corriqueiras, sobre o bom sentido moral da sociedade, do Estado e mesmo do mercado, demarcados por certas “afinidades eletivas” na via das escolhas políticas seletivas (exclusão dos inimigos ou dos que pensam diferente), e culturais de base religiosa, em desfavor de critérios republicanos. Eis o retorno a uma questão vital.

Como contrapor-se politicamente ao ultraliberalismo camuflado numa extrema direita perversa cada vez mais próxima a práticas fascistas e nazistas? É um grande desafio. Não basta substituir um populismo por outro, de esquerda, sem consciência da necessidade de ultrapassar o pragmatismo subserviente às imposições de um mercado canibalizado pelos ditames da financeirização de mercados.

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