Hoje está fazendo 128 anos que o cruzeiro Alagoas deixou águas brasileiras no rumo de Lisboa, escoltado pela nau capitânia da esquadra brasileira, o encouraçado Riachuelo, comandado pelo capitão de mar e guerra Alexandrino Alencar, futuro almirante que deu o nome à rua principal do charmoso bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro.
A missão do Riachuelo era impedir que o vapor imperial aproasse a terra e Dom Pedro II e sua família desembarcassem em algum ponto do Brasil (dizia-se que aportariam em Maceió) e dali iniciasse uma resistência à república ainda nos cueiros na destronada Corte, transformada em Distrito Federal.
Estava consolidada a República.
O problema da Lei Áurea do jeito que foi aprovada no Congresso, primeiro na Câmara (10 de maio) e, logo em seguida, no Senado, promulgada no mesmo dia pela Princesa Isabel, num domingo, em 13 de maio de 1888, já se previa que o assunto não morreria ali. Como as reformas de nossos dias, ficou tanta coisa para trás que só podia dar errado.
Entretanto, a princesa preferiu sancionar a Lei como veio do Legislativo, pois se vetasse ou adiasse a assinatura, a abolição poderia retroceder. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando, disse o Conselheiro Acácio vendo a saia justa da regente do Império.
A dúvida era que o texto aprovado não correspondia ao projeto de reforma proposta e defendida estridentemente nas ruas do Rio e das províncias. Um costume muito antigo dos legislativos brasileiros e que continua se repetindo. Como nas reformas mutiladas nos parlamentos de hoje em dia, também a lei de extinção da escravidão passou no plenário muito alterada. E como sói acontecer com tais remendões, produziu efeitos negativos até hoje sentidos pela população que, teoricamente, deveria ter sido beneficiada. Não estamos falando de reformas trabalhista ou da Previdência.
Volto ao assunto porque muitos leitores pediram esclarecimentos à afirmação de que o golpe militar de 15 de novembro deveu-se, em parte, à mobilização que os abolicionistas faziam logo depois de sua promulgação para emendar a Lei, sob a liderança da Princesa Isabel. A reação dos abolicionistas e a pressão das ruas foi uma das causas da crise política de novembro de 1889, que levou ao golpe de estado que derrubou a monarquia e proclamou a república, extinguindo o Império e criou os Estados Unidos do Brasil, hoje conhecido como Republica Federativa do Brasil.
A princesa no trono seria a reabertura das propostas, a volta daqueles planos de inclusão dos ex-escravos, cuidadosamente elaborados pelos abolicionistas que, sob a liderança, neste caso, do engenheiro André Rebouças, foram extirpados da Lei.
A Lei Áurea tal como veio da Câmara (o Senado, naquela época, não votava leis, apenas revisava. Assim mesmo, aprovou o texto da Câmara Baixa sem ressalvas) era uma casca de banana. No passado, os próprios abolicionistas criticaram leis antiescravistas atrofiadas, como foi o caso da Lei dos Sexagenários. Entretanto, Isabel decidiu sancionar e discutir depois na legislação infraconstitucional. Foi aí que se perdeu.
Era pegar ou largar. A princesa resolveu enfrentar o bicho sem armas, só com unhas e dentes, promulgando a lei no próprio domingo, horas depois de o Senado mandar o documento para sanção. Foi assim o decreto, hoje conhecido como Lei Áurea:
“A princesa imperial regente, em nome de sua majestade, o imperador d. Pedro 2º, faz saber a todos os súditos do império, que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte: Artigo 1º – É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil; Artigo 2º – Revogam-se as disposições em contrário”, dizia o texto.
E só. Nada de indenizações aos proprietários, nada de garantias aos ex-escravos, O resultado político, entretanto, foi exuberante. Mal correu a notícia, as ruas do Rio de Janeiro e demais capitais e grandes cidades servidas por telégrafo, encheram-se de gente. As manifestações duraram vários dias seguidos, foram as maiores conhecidas na História do Brasil, tanto que nem mesmo a vitória na Copa do Mundo de 1958 e nem mesmo aos comícios das Diretas Já tiveram tamanha repercussão positiva. As fotografias comprovam.
Na verdade, todinha a população brasileira odiava a escravatura, envergonhava-se e apoiava os abolicionistas. Porém, como no caso das eleições diretas, o Congresso não dava maioria qualificada para mudar a Lei, e a cada votação (o projetos de lei repetiam-se ano a ano desde a década de 1870), o projeto caia. Até que na gestão do Visconde de Ouro Preto, com apoio do governo (parlamentarista), passou, mas desse jeito.
O resultado é que os ex-escravos das grandes plantações foram dispensados e jogados na periferia das grandes cidades, principalmente de São Paulo. Ali começa a decadência social da antiga classe trabalhadora, substituída nas lavouras e nas profissões pelos europeus e orientais. Aí está o fracasso da Lei Áurea, aprovada com tamanhas mutilações que em vez de resolver os problemas, criou novos com que até hoje o País se debate. Uma reforma mal feita pode ser pior que o status quo anterior. Ou, como dizia o Conselheiro Acácio: “Ficou pior a emenda que o soneto”.