O Exército deixou a favela da Rocinha, no Rio, completando sua missão de dar tranquilidade àquela população pacata que, de uma hora para outra, viu-se no meio de uma guerra pelo poder entre os dois estadistas do morro: Rogério 157 e Nem. De volta aos quartéis, soldados, fuzileiros navais e PAs da Aeronáutica mostraram que são uma garantia, pois se não houve enfrentamento armado, a presença das tropas federais pôs a bandidagem em respeito.
Os livros básicos dos conflitos nas favelas do Rio são “Cidade de Deus” (Companhia das Letras), de Paulo Lins, e “Abusado, o Dono do Morro Santa Marta” (Record), de Caco Barcelos. Ali estão reportagens investigativas demonstrando que a luta interna não passa pelas autoridades do estado.
Como se viu na Rocinha: o tiroteio que se ouvia nos áudios vinha das armas das facções em luta entre si, não diretamente dos delinquentes com a polícia ou contra as Forças Armadas. O que fez refluir a luta foi a logística: munições esgotadas, alto custo dos combates e isolamento territorial.
O combate de forças convencionais em área urbana sempre foi um fracasso. A mais dramática que se conhece foi o Gueto de Varsóvia. Para submeter a rebelião dos judeus o Exército de Hitler pagou um altíssimo preço e teve de eliminar a quase totalidade da população civil.
O mesmo se deu na Argélia, nos anos 1950, com os rebeldes nacionalistas entrincheirados no Casbá. O Exército francês perdeu a guerra e o território. Obtida a independência, o governo nacional argelino acabou com aquele bastião, hoje transformado num monte de ruinas. Não será com as armas que a bandidagem das favelas será removida.
De verde-oliva, ficou no ar o ectoplasma do falecido marechal Olímpio Mourão Filho. O fantasma do velho cabo de guerra ainda assombra as noites brasilienses, desde que seu (quase) homônimo, o general Hamilton Mourão, apareceu no noticiário abrindo nos arraiais políticos aquela imagem denominada “barata voa”.
É de espantar como uma fala realizada no recolhimento da entidade mais secreta do mundo, a Maçonaria, transpirou e saiu pela Esplanada como um busca-pé em festa de São João. Talvez seja porque a maçonaria não é mais a mesma dos velhos tempos das guerras de independência.
Militares de alta patente na maçonaria ainda é muito comum: Caxias, Osório, Tamandaré e até Dom Pedro I, para não se lembrar de Washington, Bolívar e San Martin. Botando panos quentes, o comandante do Exército, general Villas Boas desculpou o general dizendo que se trata de “um gauchão”. Seria seu jeito de falar.
Não significa que Hamilton Mourão estivesse incorporado pelo espírito andante de Bento Gonçalves, ou general maçom, subindo o Eixo Monumental à frente dos Lanceiros Negros para tomar a Esplanada dos Ministérios, tal qual o chefe farroupilha em 20 de setembro de 1835.
Nada disso: nesses dias os descendentes dos intrépidos Lanceiros reuniam-se em torno de uma costela de ripa, num fogão de churrasqueira no Parque da Harmonia, em Porto Alegre, na grande festa anual dos gaúchos para lembrar suas glórias do passado.
Entretanto, não é sem motivo que o medo de golpe militar assombra não só a esquerda brasileira, mas toda uma geração que no ardor da juventude cutucou a onça com vara curta. Porém, golpe de estado não se faz com um ataque de bile de um general.
Por isto foi muito oportuna a programação determinada pelo dirigente da Tevê Justiça, Fernando Guedes, de reprisar o documentário “O Dia que Durou 21 Anos”. Produzido e narrado pelo brilhante e insuspeito jornalista Flávio Tavares.
A obra audiovisual disseca o movimento hoje chamado de “Golpe de 64” em todos seus aspectos. E ali se vê que o fato menos significante do ponto de vista estratégico foi a quartelada de Mourão Filho em Juiz de Fora.
De fato, a queda de João Goulart foi um acontecimento mundial, envolvendo as forças internas mais poderosas, com a Igreja Católica à frente, e as grandes potências dentro do contexto da Guerra Fria. Estamos muito longe disto. Não há perigo de guerra mundial nem inimigos externos.
Para ficar só num desses estereótipos que Tavares revisou, é bom lembrar que a chamada Operação Brother Sam foi preparada porque a diplomacia norte-americana (leia-se CIA e demais segmentos) convenceu o presidente Lyndon Johnson que o Brasil estava à beira de uma revolta de grandes proporções, que seria convertido numa nova Guerra Civil Espanhola. Uma guerra entre esquerda e direita em tempos de radicalização.
Nos anos 1930, na Espanha, uma tentativa de golpe de estado liderada pelo general Francisco Franco, desencadeou um conflito de proporções mundiais. De um lado, o governo de Madrid foi apoiado pela União Soviética e pelas Brigadas Internacionais; do outro, os rebeldes contaram com soldados e armas da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini. Foi a antessala da II Guerra Mundial.
Aqui no Brasil, em 1963/64, os serviços secretos americanos convenceram o governo de Washington que se daria um conflito com as mesmas proporções. Um blefe. Foi a primeira vez que a velha CIA convenceu um presidente texano que a América do Norte estava sob ameaça, como depois fez anos depois com o também texano George Bush no caso do Iraque. Nunca encontraram as armas de Saddam Hussein.
Tal como lá não acharam as bombas, aqui não teve a grande guerra. Porém, ainda assustado com a história dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, ainda quentinha, Johnson mandou preparar uma esquadra para impedir o perigo vermelho no Brasil. Como diz o documentário, foi um blefe, pois não havia tamanho perigo. O governo caiu numa baforada do cachimbo do general Mourão e dos bravos guerreiros de Minas Gerais que subiram a BR 040 para tomar o Rio de Janeiro. A frota americana sequer levantou ferros.
Também não vamos minimizar, pois houve em nosso país um levante militar. O governo de Brasília caiu e os generais aproveitaram para dar um golpe de estado.
O azar foi que os americanos gostaram da experiência e dali para frente patrocinou governos militares em quase todos os países da América do Sul, a pretexto de garantir sua retaguarda contra uma invasão dos russos e chineses Ninguém acreditou na tese, mas a democracia ficou submersa por 21 anos, no caso do Brasil, longe da Esplanada dos Ministérios. Diz-se que nos outros países foi pior. A conferir.
Definitivamente a fala do general Hamilton Mourão nos recônditos da maçonaria não se parece nem um pouquinho com os perigos da Guerra Fria em 1963/64. Amplificar esse fato é uma injustiça com o general.
Quando o comandante Villas Boas explica o general Mourão como um “gauchão” está descrevendo um militar de fronteira, motivado para o conflito externo. Transcrito para os dias de hoje, esse soldado está preocupado com as ameaças reais no campo da guerra moderna. O programa prioritário mais avançado do Exército dedica-se à guerra cibernética, que pode paralisar o país e inutilizar suas defesas a partir de um notebook. É nisto que o general Mourão pensa, quando fala em guerra. Não dá para vê-lo à frente de uma quartelada no estilo caricato do estereótipo.
Quando ele diz que o limite, para um lado ou outro é a Constituição, não está jogando palavras ao vento. Suas vistas estão mergulhadas na tela de um computador.