Se há provas, se elas são suficientes, se sustentam um processo, isso será assunto para advogados, juízes e ministros da Suprema Corte. E para deputados, já que cabe a eles autorizar ou não se a denúncia terá sequência agora ou somente quando Michel Temer deixar de ser presidente, dado o foro especial. Como narrativa do ponto de vista político, porém, a nova denúncia contra o presidente da República é uma boa aula sobre a história das relações de poder no Brasil desde o início do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Relações que já foram tema de outras conversas, a última aqui.
Janot diz na denúncia que o PMDB foi galgando mais espaço a partir de 2006, no segundo governo Lula. Na verdade, é um processo que se inicia um pouco antes. Artífice principal da redemocratização após o fim da ditadura militar, o PMDB foi se tornando sinônimo do modelo de coalização presidencial que nossa democracia adotou. Para o bem e para o mal.
A redemocratização se inicia com uma aliança entre o partido que encarnou a oposição à ditadura – o PMDB, ex-MDB – e uma dissidência do partido que apoiou o regime militar – o PDS, ex-Arena. Dissidência necessária para fazer com que o PMDB, minoritário, obtivesse os votos para Tancredo Neves derrotar Paulo Maluf no Colégio Eleitoral na sucessão do general João Figueiredo. A dissidência adotou o nome de PFL.
Tancredo vence as eleições, mas morre antes de tomar posse. Vira, então, presidente, José Sarney, alguém que até alguns meses antes era nada mais nada menos que o presidente do PDS, o partido que apoiava a ditadura. Melhor encarnação da famosa frase do romance Leopardo, de Lampedusa, impossível: “É preciso que algo mude para que tudo permaneça como está”.
O PMDB cresce no governo Sarney e vai se descaracterizando. A ponto de dele surgir uma dissidência, como protesto por essa descaracterização, o PSDB. Com o discurso de que buscava retomar os valores originais do PMDB, o PSDB segue como legenda social-democrata até chegar ao poder com Fernando Henrique Cardoso. Então, vai inchando e também se descaracterizando. Vira o que o ex-ministro das Comunicações Sergio Motta batizou de “partido-ônibus”, onde sempre cabe mais um.
A lógica da coalizão presidencial brasileira passa a ser, especialmente a partir de Fernando Henrique, a de alianças determinadas por interesses difusos que passam ao largo de projetos políticos ou ideológicos. Fruto de um sistema que tem uma infinidade de partidos, a grande maioria sem nenhuma ideologia. Os governos negociam os apoios em troca de cargos, verbas, etc. O que o PSDB, embora praticasse no poder sem maiores constrangimentos, batizou no seu último programa eleitoral de “presidencialismo de cooptação”.
Maior partido do país, com maior capilaridade e grande número sempre no Congresso, o PMDB virou o principal sinônimo desse modelo. A ponto de crescer sem ter candidato próprio à Presidência, apenas atrelado sempre aos projetos vitoriosos. Não estava na chapa original de Fernando Henrique Cardoso. Aderiu depois. Não estava na chapa original de Lula. Aderiu depois. O senador Romero Jucá (PMDB-RR) virou um símbolo disso. A ponto de o ex-senador Pedro Simon um dia dizer: “Não se sabe quem será o próximo presidente. Mas o líder do governo sabemos que será Romero Jucá”.
A narrativa contada por Janot na sua nova denúncia mostra como o partido foi crescendo a partir da crise provocada pela denúncia do mensalão, na metade do primeiro governo Lula. Em 2002, o PMDB oficialmente apoiava a candidatura de José Serra, do PSDB. Com uma dissidência ligada a Lula, cujo nome mais expressivo era o hoje ex-senador José Sarney. Na transição para o novo governo, José Dirceu, que se tornaria ministro da Casa Civil, negociava a adesão formal do PMDB. Mas Lula desautorizou-o, porque não confiava no então presidente do partido, Michel Temer.
Sem o apoio formal do PMDB, Dirceu imagina um modelo diferente da coalizão tradicional. Se não havia como ter aliança por partido, se montaria um processo de busca individual de nomes para compor a maioria. É a gênese do mensalão. Quando o mensalão estoura, a saída é retornar ao modelo tradicional do presidencialismo de coalizão. E o PMDB entra formalmente na aliança no segundo governo Lula.
É a esse crescimento que Janot se refere. No comando do partido, Temer quebra as desconfianças. Ou se convence o PT de que não pode prescindir dele. Constrói uma unidade que o PMDB nunca tivera antes. Assim, torna-se o parceiro presidencial do PT quando se constrói a chapa para o governo Dilma Rousseff, que sucederá Lula. Sai o empresário José Alencar, como vice, e entra o próprio Michel Temer. E, com ele, o que Janot chama de “núcleo da Câmara”. Se no início do governo Lula, era o “núcleo do Senado”, com Sarney e Renan Calheiros (PMDB-AL) à frente, agora era Temer com Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima, Moreira Franco, Eduardo Cunha, etc… Essa turma chega ao poder com o impeachment de Dilma.
Eis aí o resumo político… O resumo jurídico, os tribunais nos dirão a seguir….