Norberto Bobbio em um de seus livros demonstra que a díade direita/esquerda ainda guarda sentido, embora seja mais complexa que d’antes. Daí merecer reflexões sobre suas mutações diante de um mundo um tanto diferente do século XVIII, quando os revolucionários franceses cunharam os termos.
Raciocinar por dicotomias pode simplificar retóricas em disputa de poder na arena política, tornando mais incompreensível a realidade. Nesta os interesses tipicamente do campo da direita e da esquerda parecem atingir a uma ordem de grandeza jamais vista.
A direita elegeu a liberdade como máxima moderna e a esquerda a igualdade. A liberdade circunscreve-se no mercado capitalista e na política liberal da democracia constitucional sonhados como situações históricas complementares, quase sinônimas.
A esquerda, por sua vez, refere-se à bandeira igualitária, vale dizer, fundada no compromisso com a superação das desigualdades (estruturais e culturais), propondo a eliminação da sociedade de classes. A luta por igualdade como processo social implicou em compromissos legítimos – pois moralmente aceitáveis, com a reparação de danos. Todavia, estas mostraram-se não somente insuficientes para a erradicação de desigualdades, mas cada vez mais desconectadas quanto às consequências de suas escolhas.
Estacionadas nesse patamar das reformas consentidas pelo mercado canibal, as esquerdas patinam no “transformismo” , sob riscos conhecidos de ampliação do fosso das desigualdades. O governo Lula afirmou conquistas e elas se esfumaram no ar ainda no governo Dilma. Hoje o imbróglio social é parte dos “acordos caracu” firmados desde 2002.
A direita liberal perdeu muito espaço diante de um mercado voraz, seletivo e predador que é aquele dominado pelos interesses financeiros. A esquerda, de sua parte, fragmentou-se em suas tentativas pragmáticas e imediatas de redução de danos, desgastando-se nas experiências de “governabilidade” na exata medida das crises do capitalismo e na coqueluche dos movimentos identitários. Ambas tendem a tornar inefetivos os muitos direitos fundamentais de cariz social necessários para empreender lutas mais amplas capazes de redefinir relações de poder dos quem de fato mandam no mundo.
Nos dois casos, esquerda e direita dissociaram-se da realidade na medida em que suas ações políticas não lograram manter e revitalizar conexões com as ideias herdadas do Iluminismo. Há inegável déficit de crítica às modernizações industriais (e bélicas) vivenciadas no século XX pelos blocos da Guerra Fria. Intelectuais respeitados ainda insistem em defender Cuba e o que ainda temos de arcaísmos dos socialismos reais.
A falta de continuidade em políticas em nome da liberdade e da igualdade fracassaram, por razões distintas nos modelos dos EUA e associados e aquele da União soviética e satélites. A fraternidade sempre foi relegada a um princípio menor que os seus dois irmãos gêmeos.
Nos dias atuais a ascensão da extrema direita expressa vários fracassos: 1°) do capitalismo em sua promessa liberal de distribuição evolutiva de direitos; 2°) dos projetos socialistas tradicionalistas irmanados com uma parceria com o Capital na qual vai-se esgarçando a legitimidade de representação de uma classe cuja unidade do passado já não existe mais nem é possível; a estes dois fracassos juntam-se outros, como, 3°) a crescente deslegitimação institucional e; 4°) a crônica incapacidade da direita liberal e das esquerdas convencionais de transformarem-se em propostas conceituais (e comportamentais) de ação política.
Enquanto persistir o duplo divórcio nas hostes de antigos protagonistas da história, de liberais e socialistas, de atitudes sem conexão com ideias e de união e complementaridade entre os interessados num campo institucional comum a mundo homem livre e emancipado, solidário, a extrema direita tenderá a crescer.
Curiosamente a ascensão do ultraliberalismo responde às profundas clivagens sociais causadas: a) pela insistente ilusão liberal no casamento eterno entre lex mercatória e instituições políticas; b) pela insistência na falácia socialista no caráter ideológico do estado de direito burguês.
Na atual conjuntura a extrema esquerda pouco procura no mundo Ocidental, pois à esquerda de algo que não existe. A preocupação é com a extrema-direita, posto que ela se alimenta dos impasses liberais e socialistas. Superar esses impasses o grande desafio. Liberais terão que repensar a acumulação em termos não excludentes e com justiça social progressiva. Socialistas deverão repensar modelos de reconstrução do mercado e novas formas de participação na representação política.
A luta por liberdade e igualdade jamais dependeu tanto de uma pausa no pragmatismo alienante para refletir sobre a potência da esquerda e da direita democráticas.