Um amigo cuja inquietude contagiante instiga-me a escrever boa parte de pequenos escritos como este, enviou-me um post de Marcia Tigani no Telegram, na qual ela recupera passagens de um resposta de Vasily Lanovoy, um grande ator russo (1934-2021), sobre o significado do 9 de maio para os russos. Vasily expressa com muito orgulho o papel do seu país na segunda Guerra Mundial, atribuindo a ele a resistência e a derrota do nazismo.
Enquanto dezenas de países capitularam rapidamente, os soviéticos resistiram à ocupação dos alemães por quatro anos e avançaram até o bunker de Hitler, humilhando-o.
A guerra da Ucrânia, os discursos inflamados de Zelensky, Biden e Putin, a disputa entre Bolsonaro e Lula, tudo induz a uma guerra de informações entre Estados e a um movimento complementar, o da guerrilha de narrativas na sociedade civil, cujos resultados são desinformação e insegurança. Nesse ambiente, curiosamente crescem os falsos moedeiros de todas as cores. O perigo de mais repetições ronda o cenário mundial e local. Mas retorno a Vasily Lanovoy, forçando uma reflexão sobre heranças e herdeiros do tumultuado século XX.
Precisamos do comunismo stalinista pra derrotar o hitlerismo nazista. Graças a um sistema totalitário já consolidado barramos outro, a se consolidar. E daí o mundo se tornou mais livre ao custo da ampliação da cortina de ferro. Valores democráticos no Ocidente granjearam a força imaginária para colar a ideia de liberdade à realidade do mercado capitalista. No Oriente, a nova União Soviética impôs a expansão territorial a fórceps, ampliando a ditadura do proletariado, uma rede de gúlaks agora mais legítima e universal.
Tudo em nome do socialismo. E nasceu a guerra fria. A ideologia comum aos dois blocos da política como uma questão de escolha maniqueísta, entre o melhor e o pior dos mundos. Os EUA, que somente entraram na Guerra em 1942, salvaram a Europa com o Plano Marshall e esquadrinharam a ONU, o Banco Mundial, OCDE, OTAN, etc. A URSSA exportou a ideia – e armas para outros países nos quais lutar por igualdade significava abraçar o marxismo-leninismo. Aí se deu a reação ultraliberal da turma de F. Hayek e o que temos hoje. Uma sucessão de equívocos de ideários casados com a lenta marcha da acumulação atropelando utopias e vidas. Um deboche global.
As democracias mais avançadas murcharam ainda no século passado, acompanhando a queda do Muro de Berlim. O mundo de cabeça para baixo enquanto as retóricas em nome dos valores libertário-emancipatórios continuaram e continuam cativos nas masmorras do interesses de seletos grupos em disputas por mercados e da sua direção.
E repetimos falseamentos enquanto uma guerra parece o estopim de uma outra maior, sem precedentes. No Brasil fingimos estar diante de um fascismo e queremos derrotá-lo com o apoio do que muitos desavisados tomam como valores socialistas, ou o que é pior, valores democráticos inquestionáveis. Essa guerra de bodes expiatórios é o que nos resta como política num tempo de entorpecimento generalizado. Nele dispensamos a difícil tarefa de refletir sobre o tamanho de nossas misérias, mentais, intelectuais e espirituais, apostando ganhar a guerra contra a Barbárie com os mesmos peões de um xadrez conhecido entre os senhores da morte.
Nesse tabuleiro confuso e dissimulado, por certo, há a presença da ultradireita no poder, a ser enfrentada e superada historicamente. Sem jamais esquecer que aquelas forças reacionárias em boa parte lá se encontram por obra da “esquerda de governabilidade” e que reais avanços na luta democrática exigem muito mais que a conquista do poder e a derrota do inimigo. Espera-se, para transformar o ethos geral na cultura dos que resistem e sonham um mundo melhor, uma profunda autocrítica, mudando comportamentos. Sob pena da repetição histórica, seja como farsa ou tragédia. Elas costumam ser almas gêmeas.
As certezas da saída única – Lula, e as incertezas da 3a via indicam uma conhecida cisão com prevalência de interesses particulares em detrimento dos reais interesses do Comum. Tomara que em cinco meses essas dificuldades permitam destronar esse governo esdrúxulo e construir um outro, democrático