Os regimes de índole autoritária têm expedientes reincidentes e inimigos coincidentes. Todos eles tramam segregar as minorias em guetos (físicos ou socioeconômicos), malversam em máquinas de propagandas, têm a mentira como método, abominam a imprensa, terceirizam os fracassos, satanizam as esquerdas e boicotam o conhecimento.
No Brasil, os assaltos aos centros do saber são assíduos desde o flagelo Abraham Weintraub. A sabotagem a ciência na pandemia escavou uma dolorosa necrópole. O censo demográfico é a mais recente vítima do desprezo bolsonarista ao conhecimento. Poucos discrepam que essa radiografia é o roteiro mais adequado para otimizar os investimentos públicos, sem desperdícios, sobreposições e a maneira mais equânime de definir prioridades diante da escassez de recursos.
O valor projetado pelo IBGE, vinculado ao eruptivo Paulo Guedes, para o Censo era de R$ 2 bi. O Congresso reduziu para apenas R$ 71 mil. Ao sancionar com vetos o texto, o capitão cortou a verba para o censo mais ainda, R$ 53 mil. Um bajulador de Guedes entoou glacialmente o réquiem pelo segundo ano: “Não há previsão orçamentária para o censo, portanto ele não se realizará em 2021”. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal: “Como combater desigualdades, instituir programas de transferência de renda, construir escolas e hospitais sem prévio conhecimento das necessidades locais?”, chicoteou lucidamente o relator no STF, ministro Marco Aurélio, que mandou o governo se virar e realizar o censo, imprescindível para qualificar o gasto público.
Apenas em gastos supérfluos em 2020, o governo mastigou R$ 2,2 mi com chicletes, torrou R$ 32 mi com pizzas e refrigerantes e entornou R$ 15, 6 mi em leite condensado para suas tropas ociosas. As férias presidenciais na praia, de 18 dias entre 2020 e 2021, drenaram outros R$ 2,3 mi de verbas públicas, perto de R$ 127 mil/dia. Já a expedição em busca do spray milagroso à Terra Santa borrifou outros R$ 400 mil dos recursos públicos pelos ares israelenses. Haja inutilidade! A soma dessas mamatas atingiu R$ 52,5 mi, pouco menos que a verba reservada ao censo para iluminar os investimentos prioritários, inclusive os programas de resgastes sociais. Considerada a privatização das despesas obrigatórias do orçamento para emendas políticas do centrão (R$ 39 bilhões) o Brasil teria recursos suficientes para vários censos.
O porteiro do cofre, Paulo Guedes, parece dormir no batente ou não se incomodar com esse tipo de arrombamento da fechadura. Ele se ocupa com outras portarias no esforço de agradar e engrossar o obscurantismo. Guedes fez um novo streaptease, sem saber que estava sendo gravado em uma reunião: “O chinês inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva do que a americana. O americano tem 100 anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam: ‘Qual é o vírus? É esse? Tá bom, decodifica’. Tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor do que as outras”.
A xenofobia reiterada contra a China tem cobrado um preço alto em vidas na pandemia e atrasos nos insumos. Achou pouco e se perfilou entre os ideólogos da Casa Grande ao criticar o FIES que financiou “o filho do porteiro” de seu prédio com notas insatisfatórias. Nada surpreendente de quem ambiciona taxar livros. Guedes sempre negaceia e gosta de posar como vítima de supostas descontextualizações.
Na mesma reunião, o vigilante ministro e general Luiz Eduardo Ramos, da Casa Civil, afirmou ter tomado “escondido” a vacina contra a Covid-19 e disse que tenta convencer Jair Bolsonaro a se imunizar também: “Tomei escondido, né, porque a orientação era para todo mundo ir pra casa, mas vazou. Não tenho vergonha, não. Eu tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. Se a ciência e a medicina tá (sic) dizendo que é a vacina, né, Guedes, quem sou eu para me contrapor? Estou envolvido pessoalmente, tentando convencer o nosso presidente. Nós não podemos perder o presidente para um vírus desses. A vida dele, no momento, corre risco”, preocupou-se o amarelado general com um comando covarde para a tropa. A mesma tropa abandonada pelo ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, cuja gestão envergonha a farda que veste e que fugiu da CPI invocando a necessidade de distanciamento social, antes solenemente ignorado por ele no ministério e em um shopping de Manaus.
A régua moral da nova política pode ser compreendida nas práticas de outros seguidores, igualmente dissimulados. O Deputado Bibo Nunes, que costuma desfilar com um terno com imagens da bandeira nacional, não é tão patriota para economizar recursos dos contribuintes. Queimou R$ 58 mil do dinheiro público com o aluguel de um carro de luxo: “meu padrão de vida é esse. Meus carros sempre foram BMW, Porsche. Quem não gostar que vá enxugar gelo. Para mim é comum isso desde que eu nasci”. O escárnio usado para enxugar recursos públicos é indecoroso. É só mais um dilapidador, um bibo da nova corte, comparável aos ex-deputados da velha corte, Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto, que também se refestelaram com o dinheiro público e, por isso, foram parar na cadeia e hoje posam de mocinhos nos comícios e solenidades bolsonaristas.
Para a sentinela do cofre, muito mais preocupantes do que desperdícios, gastos supérfluos e emendas para o centrão, são os investimentos na academia através do FIES, cujo nome revela ser um financiamento a ser pago pelo tomador. O ProUni e o FIES foram programas que criaram oportunidades para mais de 16 milhões de estudantes que já haviam concluído o ensino médio, mas enfrentavam dificuldades no acesso ao ensino superior. Na área da educação há uma concorrência acirrada para mostrar quem fez mais pela área. Collor tentou nacionalizar os Centros de Ensino Integral de Leonel Brizola, FHC criou a Lei de Diretrizes e Bases e o Enem, os governos do PT abriram dezenas de universidades, criaram o ProUni e o Fies, além das escolas técnicas. A única gestão pós ditadura que se empenha em arruinar a educação é a de Bolsonaro, com esforço coletivo de ministros subservientes, despreparados e preconceituosos.
Paulo Guedes, ao vigiar a portaria alheia, parece não perceber que a sua já foi estilhaçada pelas pedras colhidas nos escombros da economia. Com um PIB medíocre, o Brasil caiu da 9 para 12 posição no ranking econômico mundial (já ocupou a 6 posição), o desemprego bateu na estratosfera recorde de 14,4 milhões de pessoas ativas sem ocupação, a fome ressurge ameaçadora, houve fuga de capitais, a dívida pública explodiu, as fábricas vão fechando as portas no Brasil, estrangulando as cadeias produtivas, o Real é uma das moedas mais desvalorizadas do mundo, há queima das reservas e a inflação, desconhecida das novas gerações, ressurge com vigor na ponta da linha, com os aumentos proibitivos de até 40% na cesta básica, com custos superlativos do gás de cozinha, arroz, feijão, carne e combustíveis.
Em pouco mais de 2 anos o Brasil retrocedeu quase 20 anos na economia e mais de um século em valores civilizatórios. Com a pandemia fora de controle pela inação e incompetência do governo, com vacinas tardias e contratadas em quantidades insuficientes, a economia não tracionará tão cedo e o crescimento em “V”, sempre prometido para semana que vem, seguirá sendo um ilusionismo retórico de Paulo Guedes. Ele se soma a outras declarações inverificáveis: “Vamos zerar o déficit em um ano”, “quatro grandes privatizações em 90 dias”, “1 trilhão em privatizações”, “reforma será enviada na semana que vem”, “com R$ 5 bi a gente aniquila o coronavírus”, “o Brasil vai surpreender”. A galeria de fracassos de Paulo Guedes não cabe na portaria, nem no pátio. O condomínio administrado por ele está repleto de rachaduras, infiltrações e fracassos.
A reforma da Previdência amadureceu no governo Michel Temer. Apesar de a emenda ter prosperado, Guedes não conseguiu incluir estados e municípios na reforma e nem criar um novo regime baseado no sistema de capitalização. As prometidas privatizações também não andaram, com o próprio ministro se admitindo frustrado com seus resultados. E a tentativa de mudar a legislação para tornar mais célere a venda de uma estatal nem sequer conseguiu apoio do restante da Esplanada. Outra derrota de Guedes foi a tentativa de desonerar a folha de pagamento para todos os setores da economia. Guedes queria compensar a perda de arrecadação com um novo imposto, no caso a reedição da CPMF, proposta rechaçada em 2019 e 2020 antes mesmo de chegar ao Congresso. Um imposto “de merda”, segundo o próprio Guedes.
O ministro também tentou desengavetar as três propostas de emenda à Constituição que mexiam com o orçamento público: a do Pacto Federativo, Emergencial e dos Fundos Públicos. Na que tramitou, a emergencial, Guedes foi derrotado. Era uma forma de tirar as amarras do Orçamento e desindexar as verbas da Saúde e Educação, mas fracassou. O orçamento 2021, aprovado e sancionado pelo fórceps do centrão, com vetos parciais, foi capítulo final de um processo em que se evitou impor uma dura derrota ao ministro Paulo Guedes, mas do qual ele saiu bastante desgastado. Na acidentada trajetória dentro do elevador social privativo, vedado aos porteiros e seus filhos, o posto Ipiranga perdeu 11 de seus principais ascensoristas. Entre eles Marcos Cintra na Receita Federal e, o mais traumático, o presidente da Petrobrás, que sugeriu a interferência na política de preços da estatal.
Se o desastre na economia é inegável, o desempenho nas relações com o Congresso e com a opinião pública é igualmente catastrófico. Em outra reunião, teoricamente secreta, Paulo Guedes cometeu muitos suicídios retóricos, revelando seus alvos prediletos: “nós já botamos a granada no bolso do inimigo. Dois anos sem aumento de salário. Era a terceira torre que nós pedimos para derrubar”, disse sobre os servidores públicos na rumorosa reunião ministerial de abril de 2020. Sobre um dos principais pilares da economia atual, Guedes também exibiu sua franqueza: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”. As pequenas empresas respondem por 30% do PIB e mais de 50% dos empregos formais.
De volta ao térreo, diante da porta do elevador de serviço, Guedes descortinou sua visão da cobertura do prédio: “não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vamos importar menos, fazer substituição de importações, turismo. (Era) todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para a Disneylândia, uma festa danada”. As classes sociais dos andares intermediários, os servidores públicos eram alvos recorrentes: “O funcionalismo teve aumento de 50% acima da inflação, além de ter estabilidade na carreira e aposentadoria generosa. O hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita”, algo equivalente aos “vagabundos” do ex-presidente FCH sobre os aposentados.
Guedes não se limitou a considerações sobre as vidraças socioeconômicas. Fez faxinas também nos pátios institucionais e lustrou as teses golpistas ventiladas pelos filhos e aliados de Jair Bolsonaro: “sejam responsáveis, pratiquem a democracia. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com 10 meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5.” A nostalgia dos tempos de Chile, do sanguinário Augusto Pinochet é irrefreável. Quando contrariado perde a serenidade do síndico e parte para a briga de vizinhos: “Tchutchuca é a mãe, é a avó”, apelou após a provocação em uma das comissões da Câmara em 2019. Sem censo nem bom senso, seguimos no descenso.