No final de 2007, eu estava em Costigliole d’Asti, no Piemonte, noroeste da Itália, para fazer um curso de especialização em enogastronomia piemontesa. Costigliole é uma cidade calma e pequena, com pouco mais de 5 mil habitantes, na província de Asti. Ali, conheci um agradável lugar para provar vinhos das uvas Barbera e Nebbiolo, acompanhados de produtos e receitas típicas da culinária regional: a Enoteca Caffe’ Roma. Um lugar familiar e aconchegante. Vivi, naquele simpático restaurante, uma situação inicialmente constrangedora, mas que acabou mostrando-me a generosidade e hospitalidade das pessoas nas pequenas cidades do interior da Itália. E ainda me rendeu uma bela receita, que faço até hoje.
Certa noite decidi ir até o Caffe’ Roma tomar um vinho e comer algumas delícias da culinária local. Saí do hotel com os termômetros registrando a temperatura de 3 graus. Estava frio. Coloquei-me a caminho, numa estradinha estreita, quase uma trilha, completamente escura, cercada por uma mata.
Atravessar aquela floresta me trouxe à memória O Sétimo Selo, filme de Ingmar Bergman que conta a história de um cavaleiro medieval que joga uma partida de xadrez com a morte, na tentativa de prolongar sua vida e, ao mesmo tempo, compreender o sentido de sua existência e luta. Muitas cenas do filme aconteceram numa floresta escura. As sombras do caminho levaram-me a imaginar que, a qualquer momento, poderia ser surpreendido por um monstruoso dragão ou um sombrio cavaleiro saído de uma gravura de Marcelo Grassmann.
Depois de vinte minutos de caminhada, cheguei ao café. São e salvo. O ambiente estava quente e aconchegante. Desci até a adega, uma ampla sala no subsolo. Entre as milhares de garrafas e magníficos Barolos e Barbarescos, escolhi um Barbera 1996 do produtor Alfiero Boffa. Havia tomado vinhos desse produtor há alguns anos, no Brasil. Gostei muito. Mas a importadora parou de comercializá-los. Uma pena.
À mesa, o vinho, depois de onze anos na garrafa, mostrou-se vivo, com acidez plena e taninos macios. Achei-o surpreendente. Acompanhei o vinho com finíssimas fatias de Lardo di Colonnata, uma iguaria toscana, presunto cru Sardo e alguns queijos piemonteses, entre eles o Robiola e o Toma. Junto do queijo me foi servida uma porção de Mosto Cotto de uvas, uma mostarda de frutas. O sabor do mosto, com seu toque agridoce, fez delicioso contraponto com os queijos. Um casamento particular.
Na hora de pagar, um susto. Eu esquecera, no hotel, dinheiro e passaporte. Constrangido, fui até o dono do café, Gino Risso, e expliquei a situação. Informei que iria ao hotel pegar dinheiro e voltaria para pagar. Propus deixar o meu relógio como garantia. Gino olhou para o relógio e para mim. Tranqüilo, ele me disse: “Pode ir. Sei que voltará. E quando voltar, hoje ou outro dia, você paga”.
Deixei o café e coloquei-me novamente no caminho escuro. Apertei o passo. No hotel, peguei o documento e euros. Retomei a trilha de sombras e imaginações medievais. Eu suava muito, mesmo com a temperatura próxima a 0 grau. Em menos de uma hora, estava de volta ao Caffe’ Roma.
Fui direto até o Gino. “Voltei para pagar”, disse. Ele olhou-me novamente tranquilo, com um amigável sorriso. Sentei-me numa das mesas e pedi para abrir mais uma garrafa do Barbera Alfiero Boffa, este da safra 1999. Precisa relaxar. Esta safra estava tão fantástica como o vinho de 1996 que bebera antes.
Os Barberas são vinhos gastronômicos, infelizmente pouco conhecidos e comercializados no Brasil. Vão bem com pizzas, massas, pratos de carne, cogumelos. São frescos e frutados, com boa estrutura. Os piemonteses acompanham quase tudo com ele. É o vinho do dia a dia da região. Com as uvas bem tratadas nos vinhedos e os vinhos bem vinificados, eles surpreendem e são capazes de envelhecer bem por muitos anos.
Quando o movimento na enoteca diminuiu, Gino deixou a cozinha e veio até a mesa onde eu estava. Começamos a conversar. Eu o convidei para sentar e tomar um copo de vinho. Falamos sobre o Piemonte, a magnífica cozinha local e os Barberas, uma paixão do chef. Majoritariamente, os vinhos de sua adega subterrânea eram Barberas de inúmeros bons produtores locais. Na conversa, disse a Gino ter adorado o Mosto de Uvas que ele serviu com os queijos. Espontaneamente, ele contou-me a receita. Fiquei tremendamente feliz. Poderia reproduzi-la em minha casa, no Brasil. Trouxe a receita como um tesouro.
Três anos depois, num gelado mês de dezembro, voltei a Costigliole d’Asti. E retornei à Enoteca Caffe’ Roma, onde fartei-me com deliciosos pratos, alguns à base de trufas brancas, a grande iguaria regional. Desta vez estava na temporada. Gino reconheceu-me, conversamos. E ele ensinou-me outras receitas. Mostrou-me como se faz a Bagna Cauda, uma espécie de fondue piemontês, preparo à base de manteiga, alho e anchovas, e o saboroso Bollito Misto, um prato de carnes variadas cozidas em caldo. Dois clássicos da culinária piemontesa.
O fato ocorrido em 2007 transformou a Enoteca e Caffe’ Roma num lugar especial para mim. Uma referência, no Piemonte e na Itália. Uma esquina, no mundo. Um restaurante abraçado por uma simpática cidade. Uma cidade margeada por uma pequena floresta povoada por cavaleiros e dragões imaginários. Um lugar onde as pessoas vivem em paz, fazem grandes vinhos, cultuam a boa mesa e acreditam na palavra dos homens.
* João Alexandre é jornalista, cozinheiro e sommelier. @joao.lombardo