O título, adaptado da obra de Nelson Rodrigues, que também virou filme, se presta a exibir um seriado, baseado em fatos reais, com as esquivas do Ministério Público em apurar. Tão ruidoso nas fitas que dirige, o MP vira cinema mudo ou opera em câmera lenta quando eventuais vilões estão no Judiciário ou na sala vizinha, na procuradoria. Quando querem abusam dos efeitos especiais e pirotecnia. Quando não, desistem do protagonismo e assistem como se fossem meros espectadores de uma ficção. Na temporada atual o estrelato tem sido a mudez.
O roteiro começa na juíza paranaense que sentenciou um homem negro a 14 anos de prisão em Curitiba, onde muitas mãos balançaram o berço da lava jato. O argumento se equipara a refilmagem de um dos mais deploráveis enredos de racismo, retratado no filme “Mississipi em chamas”, de Alan Parker, também real. O chefe local da Ku Klux Klan, Edgar Ray Killen morreu na cadeia pela morte de 3 ativistas em 1964. A investigação foi do Procurador-Geral Robert Kennedy, irmão do então presidente dos EUA. O caso resultou na lei dos direitos civis que proibiu a segregação.
A magistrada é Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª. vara criminal. A sentença foi contra Natan Vieira da Paz, apelidado de “Neguinho: “Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”, prolatou a juíza. A expiação pública quanto ao “em razão da sua raça” embutiu um “se”: “Peço sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pág. 117), ofendi a alguém.”
A injúria racial é punida no Código Penal e se circunscreve ao ofendido. A pena branda se comparada ao racismo, crime contra a coletividade que é imprescritível e inafiançável. O CNJ abriu a investigação. A punição máxima é a premiada aposentadoria com salário proporcional ou integral, conforme o caso. O Ministério Público está em silêncio. Até agora mantém a bilheteria fechada sobre a sessão racista. A ação criminal é de natureza pública incondicionada. As escusas da magistrada não eximem o MP de cumprir seu dever.
Lanterninha da lei e guardião sociedade, como se apresenta, o MP parece ignorar todos os cenários de sua atuação. As redes sociais exibiram cenas de outro filme de terror. Documentário de um ditador liliputiano dos trópicos. Um guarda municipal de Santos abordou o desembargador Eduardo Siqueira para usar a máscara. O magistrado se recusou. O guarda citou o decreto e Siqueira retrucou: “Decreto não é lei”. O desembargador ainda desafiou: “Você quer que eu jogue na sua cara? Faz aí a multa”. O oficial diz então que vai registrar a autuação.
Ato contínuo o desembargador fez uma suposta ligação ao Secretário de Segurança, Sérgio Del Bel: “Estou aqui com um analfabeto de um PM seu. Eu falei, vou ligar para ele (Del Bel) porque estou andando sem máscara. Só estou eu na faixa de praia que eu estou. Ele está aqui fazendo uma multa. Eu expliquei, eles não conseguem entender”. O oficial pediu o nome do desembargador. “Não sou obrigado a dar”, afirmou o magistrado que emendou: “O senhor sabe ler? Então leia bem com quem o senhor está se metendo”, respondeu Siqueira. Em seguida, o desembargador rasgou a multa e a atirou no chão.
O arreganho deu lugar ao dublê do arrependimento após a repercussão: “Realmente, no último sábado (18/07) me exaltei, desmedidamente, com o guarda municipal Cícero Hilário, razão pela qual venho a público lhe pedir desculpas”. A contrição era uma representação. Ao CNJ, a defesa preferiu o figurino de vítima: “O cidadão Eduardo passou a ser perseguido e ilegalmente filmado pela Guarda Civil Municipal de Santos e, no dia 18 de julho de 2020, acabou sendo vítima de uma verdadeira armação, pois o guarda municipal que permaneceu na viatura sabia das abordagens anteriores, especialmente a última, quando, pela primeira vez, houve uma altercação”.
A ‘carteirada’ de Siqueira está prevista no parágrafo único do artigo 33 da lei de abuso de autoridade: “Incorre na mesma pena (6 meses a anos de detenção e multa) quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido”. O Poder Judiciário sabe o que Siqueira fez em verões passados. As provas não deixam dúvidas, até mesmo para os mais desatentos. O titular da ação penal é o MP.
O Conselho Nacional de Justiça e Tribunal de Justiça de São Paulo abriram procedimentos administrativos contra Siqueira, cuja punição mais severa é a aposentadoria. O juiz Nicolau dos Santos Neto, que surrupiou com o ex-senador Luiz Estevão R$ 170 milhões das obras do TRT/SP, conheceu o desconforto de, condenado a 26 anos de cadeia em 2006, manter aposentadoria de magistrado até 2013 quando perdeu a boquinha. Morreu em maio deste ano tentando recuperar a aposentadoria.
Januário Paludo é um dos astros mais reluzentes do elenco da lava jato. Em agosto de 2018 o megadoleiro Dario Messer foi gravado em uma sessão privê com namorada, Myra Athayde. O teor é gravíssimo: “Sendo que esse Paludo é destinatário de pelo menos parte da propina paga pelos meninos todo mês”. O procurador também foi testemunha de defesa do doleiro em 2011. Fiscal da lei depor a favor de doleiros é tão estapafúrdio quanto o acordo feito com a PGR por Onyx Lorenzoni, perdoado por Sérgio Moro, para escapar da punição pelo crime de caixa 2.
O papel do ex-juiz Sérgio Moro como verdugo, decisivo na eleição, não foi sequer investigado. Mesmo com reveses posteriores, Moro ainda posa de mocinho. Vazou áudio ilegalmente, grampeou advogados e defendeu teses fascistas aplicadas na lava jato. Relativizou a presunção da inocência, manipulou informações e deslegitimou a política. Na eleição de 2018 acendeu os holofotes na delação de Antônio Palocci, ex-ministro petista. A máscara caiu agora. A delação era uma arapuca eleitoral, imprestável e baseada em notícias de jornal.
Outro campeão de bilheteria da impunidade é Marcelo Miller. Como procurador atuou como agente duplo e foi acusado de ter usado o cargo na PGR e a proximidade com o chefe, Rodrigo Janot, para ajudar os executivos da J&F, como mostram conversas entre executivos. O procurador deixou o MPF para atuar como advogado em um escritório em favor da J&F. Depois fez concurso para juiz vislumbrando a incolumidade.
Na Constituição de 1988, o MP recebeu inúmeras garantias asseguradas aos membros do Poder Judiciário, tais como vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. O MP adquiriu uma ribalta institucional e política sem paradigma em todo o mundo. Passou a ser o paladino do regime democrático, o defensor da ordem jurídica e do patrimônio público. O constituinte não fortaleceu a instituição para alcovitar canastrões que escolhem papéis que gostam e recusam os demais.
Nelson Rodrigues é impiedosamente cáustico. Definiu que “por trás de todo paladino moral, mora um canalha”. Ele próprio caracterizou “Toda nudez será castigada” como uma obsessão em 3 atos. O almejado puritanismo do MP já pode ter sido profanado pela obsessiva militância política e silêncios permissivos. Quem mais precisa do MP são os inocentes e não os farsantes. O episódio de Cícero Hilário, apesar do sobrenome, é de chorar. O MP não tem como ficar mudo, no escurinho do cinema diante das tragédias em cartaz.