Seis atores políticos se agruparam para ensaiar uma peça em defesa da democracia. Um sétimo personagem teria se recusado a entrar em cena. Não subscreveu o roteiro alegando discordâncias dos diretores que lhe pagam um polpudo cachê mensal. O elenco reunido sugere uma dramaturgia da exclusão, script improvisado, cenário mal iluminado e diálogos desconexos. O cast reduzido e o conteúdo chamam atenção mais pelas ausências e omissões do que pelas assinaturas e afirmações. Vários democratas foram ignorados para a avant première e alguns dos protagonistas não são democratas na vida real, apenas dublês prospectando audições para pantomimas futuras.
No texto, os vilões autoritários não são identificados, não há uma vírgula sobre a defesa da vida, bem supremo da humanidade, e não se propõe nada para encurtar o longa metragem genocida que também gangrena a democracia. Participam do mise-en-scène (“Manifesto pela consciência Democrática”) Ciro Gomes, João Dória, Eduardo Leite, João Amoedo, Luciano Huck e Luiz Henrique Mandetta.
Chamuscado, quem evitou as luzes abrasivas do palco foi Sérgio Moro. Ele é da trupe do filme noir, de tramoias obscuras, trapaças sombrias, responsáveis por um serial killer estar no Planalto batendo todos os recordes de mortes por Covid-19. Graças a seus enredos transgressores, onde atuou como pistoleiro político, a turnê democrática corre riscos.
As locações facciosas de Moro foram censuradas: condução coercitiva sem prévia intimação, monitoramentos de advogados, divulgação de áudios ilegais, atuação ilícita para evitar a soltura de Lula, suspensão do sigilo da delação de Antônio Palocci na eleição, prisões preventivas abusivas e a investidura no cargo de ministro, decorrente da sua sentença condenatória.
Antes Moro operou outras claquetes delinquentes. No artigo sobre a operação “Mãos limpas”, relativizou a presunção da inocência, defendeu a publicidade opressiva, invocou uma “legitimidade” fictícia da Justiça e propôs deslegitimar a classe política, indistintamente. No tablado de Bolsonaro encenou a licença para matar e a prova ilícita, de boa fé. São as lentes fascistas e justiceiras, no pior estilo western. Suas interpretações sempre desfocaram a democracia.
Os 1534 caracteres do texto revelam algumas peculiaridades. No primeiro parágrafo assevera: “a Democracia brasileira é ameaçada”. Os mocinhos mantiveram no anonimato o bandido de tão gravosa intimidação. “A Democracia é o melhor dos sistemas políticos que a humanidade foi capaz de criar. Liberdade de expressão, respeito aos direitos individuais, justiça para todos, direito ao voto e ao protesto. Tudo isso só acontece em regimes democráticos. Fora da Democracia o que existe é o excesso, o abuso, a transgressão, o intimidamento, a ameaça e a submissão arbitrária do indivíduo ao Estado.” Por fim, o manifesto convoca os brasileiros que “apreciam” a liberdade para a união pela defesa da consciência democrática.
Apreciar é um verbo para filmes e peças, mas excêntrico para conjugar com liberdade. As expressões “excesso”, “abuso” e “transgressão” podem explicar a preferência de Moro pelos bastidores do espetáculo. O manifesto é mais um desdobramento da elegibilidade do ex-presidente Lula. Ela tem obrigado vários atores a reverem seus papéis e esconder os figurinos usados para a trama macabra atual. É um ensaio para a terceira via, que já fracassou em bilheterias pretéritas. Além das deslembranças dos principais responsáveis pelo cine-catástrofe do momento, o manifesto é também atrasado. As ameaças democráticas vêm de temporadas passadas.
O capitão ensaiou a ruptura de maneira despudorada em 5 oportunidades no ano passado. Os monólogos autoritários desavergonharam-se em 19/4/2020, em frente ao quartel general do exército. O canastrão, em um teste inicial, disse que não negociaria “nada” e repeliu a “velha política”. Se referia ao centrão, elenco de fominhas refestelados nos camarotes da nova política. No dia 3/5 afirmou no Planalto ter as Forças Armadas. Em 22/5, o contra regra Augusto Heleno ameaçou: “O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Depois de capitular diante do veto a Alexandre Ramagem na PF, em 28/5/2020, vociferou: “Acabou, porra”. Em 27/5, Eduardo Bolsonaro gravou que a ruptura não era “se”, mas “quando”. Em 17/6 a bravata atingiu o ápice ao se insurgir contra a quebra do sigilo de aliados: “Eles estão abusando… está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. O capitão se referia aos protagonistas do STF, onde perde todas. No mesmo dia, Flávio Bolsonaro recusou “radicalizar”. No dia seguinte Fabrício Queiroz foi enjaulado. O gênero pornográfico das “rachadinhas” forçou o recuo, silenciou os corneteiros da quartelada e o golpe saiu de cartaz até ser relançado recentemente, abrindo uma crise militar. Ela redundou no rompimento do capitão com o Alto Comando das Forças Armadas, que recusou a dublagem na película golpista.
No passado estes mesmos astros do manifesto democrático não davam tanta audiência às trilhas golpistas. Dois deles foram vedetes do fiasco no ministério de Bolsonaro: Sérgio Moro (MJ) e Luiz Henrique Mandetta (MS). Os dois governadores tucanos, que agora legendam o libelo, coadjuvaram em vídeos eleitorais com o capitão. Outros dois, João Amoedo e Luciano Huck, são figurantes na cena política, mas macacas de auditório de Bolsonaro desde sempre. Apenas Ciro Gomes é oposição original, embora na panorâmica eleitoral que elegeu o malfeitor e antidemocrático, o cearense tenha optado por se esconder em outras salas de exibição mais refrigeradas. Em algum lugar do passado ele preferiu passar a meia noite em Paris.
Alguns querem esquecer o verão passado, mas são cúmplices das mãos que balançaram o berço em 2018. Nos 27 anos de quase absoluta vadiagem, o capitão ficou famoso por falas e enredos autoritários. Foi cortado do exército por ameaças de explodir quartéis. Concedeu entrevistas admitindo golpes, pregou o “fuzilamento” de adversários e faz da apologia a ditaduras e carniceiros um seriado de terror: “Eu louvo o AI-5”; “O erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”; “Desaparecidos do Araguaia? Quem procura osso é cachorro”; “No período da ditadura, deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique”; “Pinochet devia ter matado mais gente.”
Os homens do panfleto aplaudiram, contribuíram ou assistiram a montagem dos episódios ditatoriais. Até os assistentes atuando no escurinho do cinema, na Lava Jato, reconheceram suas atuações medíocres. A procuradora Jerusa Viecili enviou o alerta a Deltan Dallagnol: “Temos que entender que a FT (força tarefa) ajudou a eleger Bozo, e que, se ele atropelar a democracia, a LJ (Lava Jato) será lembrada como apoiadora”.
Além da reprise do triller, a procuradora reconheceu: “Agora, com a ‘comemoração da ditadura’…estamos em silêncio nas redes sociais. Não prezamos a democracia? concordamos, como os defensores de bozo, que ditadura foram os 13 anos de governo PT? a LJ (Lava Jato) teria se desenvolvido numa ditadura?”. Viecili parece ser carne e osso e não só personagem. Ela, única a reconhecer os diálogos, se desculpou com Lula pelo deboche na morte da ex-primeira-dama: “Errei”.
O libreto da trupe, portanto, não é uma narrativa da defesa conceitual da Democracia. São efeitos especiais políticos, biombo para tentar reagrupar ambições do campo da direita ou daqueles maquiados de centro direita. Representam os personagens de Luigi Pirandello que, recusados pelo criador, buscam outros autores para novos scripts e melhores projeções. A defesa da democracia é imperativo da cidadania, sempre será necessária, mas quando é circunstancial ou casuística adquire tons burlescos. Nas sondagens eleitorais recentes, os 7 homens do centro, ainda não encontraram um destino. Somados, eles se igualam ou ficam abaixo dos dois nomes que lideram as pesquisas. Até aqui, a plateia não se empolgou com eles.
O manifesto é ainda um curta metragem voluntarioso. Os signatários têm pouca ou nenhuma influência no enredo de suas legendas. Os tucanos, com dois governadores assinando o documento, se bicam para enfraquecer Aécio Neves. João Dória perdeu dois duelos pela expulsão do mineiro e, recentemente, amargou a recondução de Bruno Araújo ao comando do PSDB. O DEM, de Mandetta, tem ministros no governo e o presidente da sigla fortaleceu Bolsonaro ao derrotar o candidato de Rodrigo Maia na Câmara. O prestígio de Amoedo envelheceu no Novo, de posturas tão arcaicas que lembram o cinema mudo, em preto e branco. Huck se inclina pelos estúdios televisivos, onde a claque é dócil e previsível. Ele não tem partido (especula-se o Cidadania) e Ciro Gomes depende de Carlos Lupi.
Iluminando a retrospectiva dessas legendas em votações de interesse do governo no Congresso, um zoom revelador. Os campeões de fidelidade a Bolsonaro, após o PSL (97%) e Patriotas (94%), estão no DEM (93%), Novo (92%), PSDB (92%) e Cidadania (87%). Os percentuais referem-se aos votos convergentes com a orientação do líder do governo. Exceto o PDT, as legendas do manifesto apresentaram altas taxas de lealdade ao governo nas votações decupadas pelo site “Congresso em foco”, divulgadas no final de 2020. O divórcio entre os caubóis do filme “Sete homens e um destino” e os colonos da base partidária, torna a ambição dos primeiros em uma refilmagem de “sonho de uma noite de verão”.