Numa tarde fria de final de outono de 2008 desembarquei na estação central de Roma. Estava terminando uma viagem que começara na região de Barolo, no Piemonte, noroeste da Itália, 16 dias atrás. Era a primeira vez que eu pisava em Roma. Os termômetros marcavam 8º C. Não sentia frio. Sentia, sim, um misto de emoção e reverência. Eu estava na cidade que alicerçou a cultura do mundo ocidental. Paris é bela. Lisboa é romântica. Madri é monumental. Berlim é dos anjos. Mas Roma é Roma.
Um táxi deixou-me no Hotel Priscilla, na via Calábria. Uma imensa janela ligava meu quarto à rua. Abri a janela para apreciar o movimento. Vi, então, uma pequena cantina, do outro lado. La Cantinola, dizia o letreiro. Pareceu-me um lugar simpático. Estava com fome. Estava também cansado, não queria ter que tomar outro táxi ou andar muito para comer. Tomei um banho, agasalhei-me, deixei o quarto e fui até a recepção. Pensei em perguntar sobre o restaurante, mas o recepcionista estava atendendo duas pessoas. E a conversa estava animada, sinalizava que ia longe. Deixei a chave sobre o balcão e desci a escada, até a porta da rua.
Atravessei a rua e parei na frente do ristorantino. Havia um pequeno aquário junto à porta, na parede. Nele, uma lagosta nadava solitária, sem saber que a qualquer hora seria “pescada” e devorada por algum comensal. O aquário, de vidro, deixava transparecer o interior do restaurante. Era simples, lembrava as clássicas cantinas do Bixiga, em São Paulo. Entrei.
As paredes, de cor amarela clara, eram cobertas por quadros e pinturas. Prateleiras enfileiravam garrafas de vinhos. Havia muitos objetos e flores no ambiente.
Um senhor chegou rápido e me recepcionou. Ele me ofereceu uma mesa junto à parede. Sentei-me. Prontamente, ele me entregou o cardápio. E me perguntou se queria antipasti. Não podia rejeitar esta entrada típica de Roma. A comida fria nasceu ali, ainda nos tempos dos imperadores. Era proibido ter fontes de fogo nas casas de aluguel, na Roma antiga. Isso, para evitar incêndios. Os romanos então passavam nas frascas (antigos restaurantes), pegavam comida pronta e levavam para comer em casa. Comida fria. Essa foi a raiz do antepasto italiano.
Aceitei o antepasto. Perguntei a ele sobre a carta de vinhos. Não havia. Os vinhos deveriam ser escolhidos na prateleira. Mas o senhor me sugeriu o vinho branco da casa. Perguntei a ele que vinho era. A resposta veio em meio a um amplo e amigável sorriso: “è segreto signore”. Também sorri, como resposta. E aceitei o vinho “segreto”, já imaginando o que viria. Antes que ele fosse buscar a garrafa, perguntei seu nome. “Livio”, respondeu-me com mais um sorriso. Era o dono. La Cantinola da Livio.
Passos rápidos levaram Livio a desaparecer por trás de uma pequena porta fechada por uma cortina de tecido vermelho. Não demorou três minutos, ele voltou com uma taça numa das mãos e uma garrafa transparente contendo o vinho, na outra. Livio serviu o vinho sem muita cerimônia. Era um branco fresco, frutado e floral. Frascati, não tive dúvidas. O vinho dos romanos. Após me servir, o homem foi até uma vitrine refrigerada preparar meu antipasti.
Livio voltou à mesa com uma grande bandeja repleta de pequenos pratos de porcelana branca. Eram sete pratinhos. Não me lembro o que havia em todos. Mas me recordo das deliciosas azeitonas pretas, de uma pequena porção de atum cozido, outra de minialcachofras, das anchovas e algumas conchas de vongole veraci. Tudo muito romano. Livio me perguntou se escolheria o prato principal naquela hora ou esperaria um pouco. Preferi esperar. Queria saborear com calma aquele simples e saboroso minibanquete. Tudo estava muito bom.
Depois de devorar os antipasti, Livio voltou à mesa e entregou-me novamente o cardápio, para escolher o prato principal. Saiu, deu uma volta no salão, recepcionou três moças que acabavam de entrar, e voltou. “Cosa mangierà signore? perguntou-me. Decidi pedir um prato que tem o DNA romano: Spaghetti alle Vongole Veraci. Seria perfeito com o vinho “segreto”. Ele ficou feliz com minha escolha. Os romanos adoram servir esses moluscos. Livio fechou o cardápio e partiu novamente em direção à porta emoldurada pela cortina vermelha. Certamente, ali atrás ficava a cozinha.
Tomei mais um gole do vinho. Na verdade, já estava no último copo. A garrafa se fora, com os antipastis. Um leve torpor começava a tomar conta de mim. Um relaxamento trazido pelo vinho. Ou por Roma?
Eu começara a viagem no Piemonte. Lá, provei grandes Barolos, vinhos de renomadas colinas e produtores. Trazia a memória gustativa do chamado rei dos vinhos, um caldo rubi intenso, complexo, repleto de aromas que remetiam a frutas negras, violetas secas, alcaçuz, especiarias doces e picantes. Um vinho interminável na boca. Quando cheguei em Roma, lembrei-me que ali era a terra dos Frascatis. O vinho branco feito com as uvas Malvasia Bianca de Candia, Malvazia del Lazio e Trebbiano Toscano. Sem desprezar estes vinhos, que já bebi muito, minha ideia era continuar nos grandes Barolos, já que os preços eram muito convidativos.
A simpatia de Livio, o ambiente e o tipo de comida que me foi oferecida, no entanto, contribuíram para que eu aceitasse a sugestão de tomar o vinho da casa. Além disso, eu estava em Roma. E deveria provar aquilo que a cidade me ofereceria. Eu não criei expectativas, não esperava um vinho para filosofar. Apenas um vinho gostoso, que combinasse com aquela deliciosa culinária local.
Então, confesso: o Frascati me surpreendeu. Estava gostoso, fresco, frutado. Desceu como um elixir dos bons momentos. Um vinho leve, que inundou de leveza meu corpo. E cujos aromas suaves de maçã e frutas brancas perfumaram o ar que eu respirava.
A volta de Livio interrompeu meu deleite. Ele repousou na minha frente o aromático e bem servido Spaghetti alle Vongole Veraci. Um preparo simples. Mas simplesmente delicioso. A legítima culinária italiana, que dispensa decoração de florzinhas ou miniervas, que não cria disputas aromáticas e gustativas numa receita e busca valorizar ao máximo o ingrediente principal do preparo.
Levei a primeira garfada à boca. A massa estava no ponto, al dente. A vongola (a palavra é feminina em italiano, e vongole é plural de vongola), carnuda, trazia em si a síntese dos sabores da água do mar, do alho, do vinho branco e o frescor da salsa. Um veludo para o paladar. Estava saborosíssimo. E não havia vinho melhor do que aquele, naquele lugar, naquele momento. Motivo pelo qual, pedi a segunda garrafa.
Comi o prato devagar, tirando o máximo proveito de cada garfada. Sorvi cada gole daquele vinho simples como se sorvesse, junto dele, tudo o que estava à minha volta. Um lugar simples, com um dono agitado e hospitaleiro, e uma comida com muita alma. Uma noite perfeita. Se tivesse programado o jantar em algum renomado restaurante romano, talvez não tivesse sido melhor.
Bebi a segunda garrafa. Devagar. Fui um dos últimos a sair. Não estava embriagado. Estava, sim, leve, feliz e satisfeito. Paguei a conta, agradeci a Livio pela cortesia e atenção. Uma ótima pessoa. Atravessei o pequeno salão e a porta de saída. A lagosta resistia. E Roma surgia novamente a meus pés, diante dos meus olhos. A cidade eterna envolvida pelo ar frio daquela noite calorosa. Roma eternamente eterna. Eu estava próximo à Via Veneto, cenário do clássico A Dolce Vita, de Fellini. Podia então dizer, tranquilamente, que a vida era doce para mim, naquele momento. Uma realidade que mais parecia uma fantasia.
Já no hotel, deitei-me e não demorou muito para o sono chegar. Foi um sono profundo, reparador. A paz nocauteou meu corpo. Era como se aquele encontro com a cidade dos romanos estivesse marcado para acontecer daquele jeito, há muito tempo. E ele acontecera.
Dos sonhos, confesso, não me lembro. Não é preciso. Recordo-me apenas que o bulício da via Calábria me arrancou deles, por volta das sete horas da manhã. Um vozerio sob a janela e muitos carros passando na rua. Roma acordara. Meu primeiro pensamento foi da noite anterior. Um momento de satisfação, no qual desfrutei da simples e deliciosa culinária romana, num pequeno ristorantino, comandado por um maestro ligeiro e atencioso, um homem simples, um legítimo romano. Mais ainda, lembrei de ter tomado Frascati, como se aquele branco leve, o vinho dos comuns, fosse o rei dos vinhos. Quem sabe não havia alguma magia naquele segreto?
* João Alexandre é jornalista, cozinheiro e sommelier. @joao.lombardo