É milenar a disputa entre o Estado arrecadador e o cidadão sobrecarregado de tributos. Na tentativa de construir sistema ideal, capaz de combinar eficiência arrecadatória com justiça distributiva, alteramos repetidamente os fundamentos constitucionais e a legislação ordinária, sem obtermos os resultados desejados.
Com facilidade semelhante àquela com que mudamos de constituição reformamos a legislação tributária. Escreveu Aliomar Baleeiro que “O sistema tributário, encerrado com a Constituição de 1946, tinha raízes na Colônia como tudo no Brasil. Na Colônia havia duas competências fiscais, apenas: a d’El Rey e das Câmaras Municipais – Senados da Câmara. E quase sempre, no começo, a tributação municipal era mais importante do que a real, porque, naquela época, os Reis viviam muito do seu patrimônio.” (O Direito Financeiro na Constituição de 1967, Constituições do Brasil, Centro de Ensino à Distância, Brasília, 1967, pág. 31).
A Constituição de 1946 inovou. Nas palavras de Aliomar Baleeiro o novo sistema tributário foi orientado pelo desejo de “homogeneizar um país que estava cada vez mais crescendo no Rio, São Paulo e, em menor proporção no sul, que definhava, amarelava, apodrecia e empobrecia nos Estados misérrimos do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Passou-se a criar um sistema tributário que fizesse uma transfusão de sangue das zonas ricas para as zonas pobres, a fim de se manter o que parecia ser o mais precioso dos bens da História do Brasil – a sua unidade nacional”.
Passados mais de 70 anos, a política de transfusão de sangue não trouxe os resultados esperados. Os estados desenvolvidos empenham-se no esforço de gerar riquezas, ao passo que os não desenvolvidos dependem cada vez mais de aportes governamentais. Para aumentar a arrecadação, Executivo e Legislativo reformam sem cessar o Título VI da Constituição que dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional, até desfigurá-lo.
Trabalhamos cinco meses por ano para pagar impostos federais, estaduais e municipais. Brasília é insaciável sorvedouro de recursos do Tesouro. Acreditava-se que a Constituição de 1988 seria obra definitiva. Imaginava-se que não teria destino semelhante às constituições de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969. O Título VI, reservado à Tributação e Orçamento, figurava entre os mais elogiados. Sobre ele se escreveram livros e centenas de artigos, foram realizados congressos e seminários.
Nos Comentários à Constituição de 1988 o professor Sacha Calmon, escreveu: “Isto dito, verifica-se que o sistema brasileiro de repartição de competências tributárias, cientificamente elaborado, é extremamente objetivo, rígido e exaustivo, quase perfeito” (Ed. Forense, RJ, 1990, pág. 7).
Com o passar dos anos a realidade se impôs. A Constituição que já nascera cheia de problemas, no interesse da arrecadação sofreu numerosas alterações. No Título VI foram introduzidas as Emendas Constitucionais nºs. 3/1993; 6, 7, 9/1995; 19, 20/1998; 29/2000; 33/2001; 37, 39/2002; 40, 41, 42/2003; 44, 45/2004; 49/2006; 55/2007; 75/2013; 84/2014; 85, 86, 87/2015; 100, 102, 103, 105/2019; 106/2020.
Desde 1205, quando a Magna Carta foi outorgada pelo rei João Sem-Terra aos ingleses, a Constituição tem sido instrumento de controle dos impostos. As nossas constituições, porém, nunca se comportaram como meios de resistência à opressão fiscal. Em artigo publicado no Estado (27/7), o professor Cláudio Adilson Gonçalez condenou a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), “que tem graves falhas e é inoportuno politicamente”. Para ele, o ministro Paulo Guedes procura reinventar a roda. O mesmo jornal estampa matéria sob o título “Choque liberal de Paulo Guedes fica no papel” (pág. B7) e traz entrevista do deputado federal Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que critica a reforma tributária em andamento e se diz contrário ao aumento da carga tributária.
O Sistema Tributário Nacional é edifício em ruínas. Não comporta reformas. A alternativa consiste em reconstruí-lo desde as fundações. Como está ofende a ordem jurídica e é fatal para a debilitada economia. O momento recomenda que se reveja a doutrina da transfusão de sangue a que alude Aliomar Baleeiro. A tarefa, porém, não deve ser confiada ao Congresso Nacional, cuja incapacidade legislativa é digna de pena. Será entregue a especialistas independentes. É vital que a Constituição adote Sistema Tributário objetivo, simples, preciso, justo, inteligente. Os detalhes irão para lei ordinária.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor do livro “A Falsa República”