Ao invés de analisar o mérito, onde tenho posição clara e conhecida, examino o poder de portaria ministerial como fonte de direitos e obrigações na esfera da saúde pública, matéria, aliás, de competência da Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Lei nº 9.782, de 26/1/1999).
É desnecessário ser advogado para saber que portaria ministerial é figura estranha ao Processo Legislativo. Prescreve o Art. 59 da Lei Fundamental que nele se compreendem: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções.
A Portaria MPT nº 620 foi baixada tendo como suportes o Decreto nº 10.671, de 2/8/2021 e o inciso II do Art. 87 da Constituição. Isto significa que o médico veterinário Onix Lorenzoni, improvisado como legislador, a editou no vácuo sem amparo constitucional. O Decreto nº 10.671/2021 se limita a aprovar a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Trabalho e Previdência. Cuida de DAS e de FCPE. Em síntese, é fonte de sinecuras bem remuneradas.
Quanto ao inciso II do Art. 87 da Lei Fundamental, concede a Ministro de Estado competência para “expedir instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos”. Nada mais.
A Portaria MTP nº 620 pretende ser mais do que fonte de instruções aos servidores do Ministério do Trabalho e Previdência. É medida administrativa com fantasias legislativas, em nítida violação do Art. 5º, II, da Constituição, cujo texto diz: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
O Art. 4º da tacanha instrução determina que o empregado demitido por forçar a permanência no ambiente coletivo de trabalho, sem estar vacinado contra a Covid-19, poderá recorrer à Justiça do Trabalho para pedir “reintegração com ressarcimento integral de todo o período, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas dos juros legais”, ou “a percepção em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais”.
Ignora o ministro Onix Lorenzoni o Capítulo V do Título II da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as atribuições fiscalizadoras do próprio Ministério, as obrigações dos empregadores relativas às “Normas de Segurança e Medicina do Trabalho”, o poder disciplinar que a lei lhes assegura, as responsabilidades que sobre eles incidem se, por ação ou omissão, contribuírem para que doença contagiosa seja disseminada no interior do estabelecimento. Ignora também que a CLT confere ao empregado a obrigação de respeitar e fazer com que todos respeitem as regras legais de defesa à saúde e de proteção à segurança própria e dos demais.
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, prescreve o Art. 196 da Constituição de 1988.
A redução dos riscos da Covid-19 se faz com a vacinação em massa. Para isso centenas de milhões foram gastos na compra de vacinas e no fornecimento gratuito à população. Segundo o jornal O Estado, “Mundo passa de 5 milhões de mortos, com casos em alta no Leste Europeu” (2/11, pág. A8). A mesma matéria informa que “o Brasil, com 55% da população completamente vacinada, tem 5,5 casos para cada 100 mil habitantes”.
A situação foi pior, mas ainda não derrotamos a tragédia humanitária. Em determinados dias faltaram leitos hospitalares, Unidades de Terapia Intensiva, garrafas de oxigênio, material cirúrgico. Milhares morrem por absoluta falta de assistência médica. Outros tantos foram sepultados em valas comuns, sem a despedida da família.
O veterinário formado pela Universidade Federal de Santa Maria deveria ter aprendido algo sobre peste entre frangos, galinhas, gado, suínos. Deveria saber que um único exemplar doente pode levar à morte dezenas de milhares. Entre humanos a situação não é diferente. A pessoa infectada e assintomática poderá ser o vetor que contaminará dezenas nas ruas, no ônibus, na aglomeração, no baile, no restaurante, na enfermaria do hospital, no pronto socorro, no estádio de futebol, no local de trabalho.
Assegurar ao empregado que, por egoísmo, idiotice, ou fanatismo religioso, se recusa a ser vacinado, o direito de colocar em risco a vida dos colegas de trabalho, é irracional e criminoso. O veterinário Onix Lorenzoni não poderia ignorá-lo. A Portaria MPT nº 620, de 1º/11/2021, baixada por S. Exa., passará à história do Ministério do Trabalho como suma manifestação de vassalagem, ignorância e terrorismo.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.