“A corrupção enquanto cultura nos desmoraliza como povo. Ela nos torna ‘blasé’. Faz-nos perder o empenho em cultivar valores éticos. Porque a república é o regime por excelência da ética na política: aquele que educa as pessoas para que prefiram o bem geral à vantagem individual”. Renato Janine Ribeiro, 2009).
Não há dúvidas que numa democracia o que é contrário às Leis deve ser apurado e responsabilizado. Tudo nos conformes jurídicos. O problema é quando a obsessão por certos fatos de repercussão imediata são hiperpolitizados, escapando dos objetivos ordinários da construção institucional da democracia para converterem-se em espetáculo contrário a ela, a médio e longo prazo. Sim, espetáculo bufo de uma política menor na qual os melhores ideais republicanos correm risco de dissolução na medida em que as disputas de interesses de grupos sobrepõem-se ao interesse geral. Muita atenção, portanto, com as armadilhas das retóricas em nome do significante corrupção.
Há muita bijuteria ” ideológica” atravessando o mercado do vale tudo na política. Essa pirataria envolvendo várias formas de corrupção vulgariza as microcorrupções cotidianas presentes na nossa cultura, confundindo e ajudando a naturalizar as macrocorrupções organizadas, segundo Renato Janine Ribeiro. Um amigo me diz: Poxa, bastava Michelle colocar as joias e na alfândega nada teria acontecido”. Um parente completa: “mas não foi Lula quem levou caminhões com presentes e devolveu o que quis e quando quis?”.
A revelação da entrada das joias, irregular ou ilegal, deve ser apurada em detalhes. Não se pode seguir Pedro II ao abafar rapidamente um célebre roubo de joias da Casa Imperial, em 1882. Os ladrões sabiam muito sobre as amantes do Rei, daí não terem respondido pelo crime. Bolsonaro teria tentado doze vezes retirar as joias para ornamentar sua bela esposa? O tempo dirá. Os procedimentos exigem atendimento à normas jurídicas e requerem ações profissionais mais técnicas, distanciadas dos holofotes da mídia. E dos oportunismos presentes na disputas de narrativas nas quais lulopetismo e bolsonarismo insistem no duelo entre mocinhos e bandidos.
Duas posturas são preocupantes nessa questão da estória mal contada das joias de Michelle apreendidas com assessores de Bolsonaro vindos da Arábia Saudita:
1a) O retorno à questão da corrupção, curiosamente “esquecida”, pois “desimportante”, depois do escândalo do Mensalão e de tantos outros grandes esquemas de propinagem envolvendo o PT e aliados. O povão aprendeu a fórceps a distinguir a ladroagem no varejo e no atacado e o feitiço pode virar contra o feiticeiro;
2a) O ensaio mutacional nas hostes lulopetistas no sentido de desmemorização acompanhada de uma fixação cognitiva voltada a diminuir ou eliminar a gravidade da “nossa” corrupção na exata medida em que se ampliam os malfeitos dos Outros, os inimigos. O caso “Juscelino Filho” foi esquecido rapidamente…Os bilhões “devolvidos” por lideranças lulopetistas na Operação Lava Jatos parecem cada vez mais uma ficção, algo distante a realidade atual.
Da parte de bolsonaristas o constrangedor episódio das joias abre espaços para um retorno ao calcanhar de Aquiles dos governos Lula, a corrupção sistêmica. É também uma oportunidade de desfocar a elaboração dos crimes atribuídos ao ex-presidente no trato da epidemia do vírus da covid 19, dos Ianomâmis, e da porteira aberta para a boiada na exploração ilegal da madeira e garimpos na Amazônia.
As duas atitudes atendem ao tempo efêmero da capitalização política demarcada pelo ambiente pós-eleitoral. Nelas prevalecem ressentimentos e ódio, revanchismos e, sobretudo, desinformação. Algo preocupante refere-se menos à curiosa continuidade da guerra de narrativas ampliada (Silas Malafaia, Fábio Wajngarten, Alexandre Garcia, de um lado, Flávio Dino, Humberto Costa e Reinaldo Azevedo, da parte do governo) mas o fato delas permanecerem no seio governo muito próximo à guerra de informação.
Renato Jeanine Ribeiro em dois textos clássicos permitem refletir sobre “a corrupção deles e a nossa” e a corrupção da República. No artigo “Corrupção de casa: os perigos do Universal” (1990) o filósofo registra como eticamente repreensível certas condutas da militância de esquerda, mesmo se não ilegais. O filósofo referia-se a episódio no qual o PT condenava falcatruas de Paulo Maluf e ao mesmo tempo se permitia, em nome de uma grande causa, usar dinheiro público em pequenos agrados para militantes. Em 2009 com seu texto “Corrupção cultural ou organizada” aquele filósofo volta ao tema, agora insistindo em diferenciar corrupção cotidiana, pequena, aquela de todos nós e corrupção estrutural, grande. O cotidiano da corrupção no varejo nosso de cada dia não deve servir para banalizar o que é mais antirrepublicano, a corrupção estrutural, a grande corrupção.
Joias desencaminhadas não podem servir de pretexto para malhar o bode expiatório, sacralizando um pretenso novo Messias no intento de apagar da memória histórica o rastro de grandes ilícitos conhecidos desde o Mensalão. Até porque a reação bolsonarista aproveita para malhar e alimentar a expiação de Lula, reavivando no senso comum, com os juros e correções da desinformação, o que de mais preciso lhe caracteriza como algo contrário ao bem público: a grande corrupção dos Outros, não reduzida ou perdoada em comparação com aquelas atribuídas aos inimigos ou às nossas pequenas corrupções do dia-a-dia.
Lula e Bolsonaro são figuras importantes no cenário nacional, mas infinitamente menores que Pedro II. Nada indica que na suas contabilidades entre o joio e o trigo de seus feitos, ou entre suas joias e bijuterias da política, seja possível fixar uma imagem superior de ambos os presidentes, na qual a grandeza do indivíduo e do protagonista na história superem as ocorrências demasiadamente banais dos seres humanos. Afinal:
“Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes segue em linha reta
A vida, que é meu bem, meu mal… ” Caetano Veloso. Vaca profana.