“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, a seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas”. A observação de Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Raízes do Brasil, nunca perdeu sua atualidade e oportunidade entre nós.
Acreditávamos que a reconstrução de nossas instituições, a partir da promulgação da Constituição de 1988, rompendo formalmente com as estruturas verticais e disfuncionais a nós legadas pelos governos militares – 1964/1984 – nos levaria a uma experiência democrática real. Aguardávamos o exercício digno da cidadania no balaio de uma adequada distribuição de renda e riqueza, na esteira de anunciadas expansões qualificadas da nossa economia. O Plano Cruzado do governo Sarney, o Plano Real do governo FHC, a graça tropical do governo Lula com sua macunaímica gestão, cada um a seu tempo, nos trouxeram ilusões específicas. Mas não conseguiram conter a crescente e contínua degradação do Estado e da coisa pública no Brasil.
Aquele “homem cordial”, identificado e definido com elegância por Sérgio Buarque de Holanda lá em 1936, nas vésperas do Estado Novo de Getúlio, ainda nas inquietudes do nosso modernismo tardio de 1922, acreditávamos, ou fingíamos crer, seria agora um conceito útil como referência acadêmica, mas não o brasileiro real herdeiro da democracia em marcha para o novo século e o novo milênio. O brasileiro avesso às relações institucionais, prisioneiro do familismo e perquiridor do patrimonialismo teria sido tragado pela pós-modernidade e pelas venturas anunciadas pela globalização que se apresentava em invencível galope.
Os sinais de fadiga dessa grande farsa começaram a surgir na segunda metade do segundo governo Lula, em 2008. Nos últimos 10 anos aceleramos, como nunca, nossa derrocada. No confronto, como é do nosso estilo, iluminamos a corrupção. Permanecemos contornando o que é fundamental e estruturante: instituições, saúde, educação, pesquisa, cidadania, sociedade e nação com qualidade e expectativas.
O olor nefasto que nos rodeava, materializou-se em 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro. A pandemia nos jogou a todos no mais denso pavor. Como que numa convulsão delirante, Bolsonaro e sua trupe nos arrastam para a mais degradante experiência da nossa história republicana. Ilusórias, inconsistentes, aparelhadas, disfuncionais as instituições do País se desnudam e apenas tateiam a gritante realidade, ostentando suas flagrantes inutilidades. Pontualmente, uma voz do STF ou um movimento no Congresso assenta um cepo no despenhadeiro buscando conter a avalanche.
“Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade”, nos ensinou Sérgio Buarque de Holanda, lá em 1936. Bem que Bolsonaro e seus pimpolhos deviam ler e aprender. Seria um bom recomeço!