O xadrez é um dos mais antigos jogos da humanidade. Também é visto como a arte da estratégia. Estudos táticos, capacidade cognitiva, habilidade, inteligência, frieza, memória visual e antecipação das jogadas adversárias são vitais para a ocupação das casas centrais e, consequentemente, o domínio sobre territórios adversários e captura do rei inimigo. Em maior número no tabuleiro, os peões, espécie de infantaria da linha de frente do combate, têm mobilidade limitada e reduzida efetividade no conflito. Avançam apenas uma casa verticalmente – ou duas no primeiro movimento a critério do enxadrista – e são incapazes de recuar.
As outras peças que têm mais liberdade de movimentação podem, taticamente, retroceder quando o cenário da batalha é desfavorável. A limitação também se aplica às possibilidades de capturas de peças adversárias. O posicionamento dos peões é um elemento chave para o ataque ou para defesa. Os mais experimentados evitam a vulnerabilidade na estrutura de formações dos peões, tais como peões dobrados (na mesma fileira), atrasados, isolados e, principalmente, presos, onde eles são praticamente inúteis. Nesses casos o custo de proteção é muito elevado e fragiliza a própria cidadela.
Em uma pesquisa do Instituto DataFolha (julho/2021) foram diagnosticados os principais atributos de Jair Bolsonaro. As conclusões atestam que o capitão, que se diz especialista em matar, não reúne os predicados mínimos de um estrategista para grandes batalhas ou mesmo para o intricado jogo do xadrez político. Para 62% dos entrevistados Bolsonaro é despreparado. Outros 58% consideraram o capitão incompetente.
Em um dos principais pressupostos para o complexo embate político, Bolsonaro é visto por 57% da população como “pouco inteligente”, percepção que se acentua com a ruína em todos os quadrantes do tabuleiro nacional. O mesmo percentual de brasileiros – 57% – entende que o capitão é indeciso, outra característica fatal para os líderes em batalhas. Para 55% dos ouvidos Bolsonaro é falso e 52% dos entrevistados o veem como desonesto. Essa compleição não o habilita para grandes conflitos ou para o intricado xadrez político. Ao longo de 3 anos de conflagração o capitão vem sangrando e sacrificando seus peões.
São gambitos em falso que não redundaram em domínio territorial. Ele manipula os peões e os sacrifica cíclica e cinicamente. Vários tombaram. A corriola é grande. O mais recente cavalo de guerra é o deputado Daniel Silveira. Um peão-mercador, como eram conhecidas antigamente as peças postadas diante da casa do rei. Foi o único a quem Bolsonaro estendeu a mão, talvez pelo valor do silêncio, primeiro mandamento nas partidas de xadrez.
Do outro lado da mesa, um dos enxadristas mais táticos e frios do STF, Alexandre de Moraes, faz ofensivas de mestre contra o autoritarismo de Bolsonaro, contra as fake news, a milícia digital, a opacidade dos dados públicos entre outros. Ele aplicou multa de R$ 405 mil ao deputado Daniel Silveira por descumprimento do uso da tornozeleira e outras violações de determinação judicial, como a de participar de eventos públicos e conceder entrevistas. Moraes bloqueou os bens nesse valor nas casas bancárias do parlamentar. O ministro também determinou que o deputado compareça à Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal para trocar a tornozeleira por um novo equipamento. Foi uma contraofensiva financeira e constritiva ao indulto de Bolsonaro concedido a Daniel Silveira.
A ‘’graça” presidencial foi decretada um dia após o STF condenar o parlamentar carioca a 8 anos e 9 meses de prisão em regime fechado por estimular atos antidemocráticos e por sucessivos ataques a ministros da Corte Suprema. O indulto é uma prerrogativa do presidente da República, mas este não guarda nenhum respeito à moralidade, à impessoalidade e à decência. O bandido de estimação de Bolsonaro, Daniel Silveira, condenado por 10 votos a 1 é inelegível, sofreu um cerco fatal e estará fora do tabuleiro eleitoral de 2022.
Daniel Silveira já foi preso duas vezes. A primeira por ataques a ministros do STF em fevereiro de 2021 e a segunda por desrespeitar o uso da tornozeleira eletrônica por cerca de 30 vezes. As decisões foram de Alexandre de Moraes, do STF, a pedido da Procuradoria-Geral da República. Na decisão, o ministro citou o “total desprezo pela Justiça”. Em 2021 ele foi preso em razão de um vídeo em que fez apologia ao AI-5, o mais sanguinário ato institucional da repressão militar, e pediu a destituição de ministros do Supremo Tribunal Federal, entre eles o lavajatista Edson Fachin.
A prisão foi chancelada pela unanimidade do STF e confirmada pela Câmara dos Deputados. O deputado Daniel Silveira ficou trancafiado 1 mês pelas declarações: “quando o Bolsonaro decide uma coisa você vai lá ‘não, isso não pode’… Suprema Corte é o cacete. Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de 11 novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereciam. Vocês são intragáveis, tá certo? Inaceitável. Intolerável, Fachin? Não é nenhum tipo de pressão sobre o Judiciário não. Porque o Judiciário tem feito uma sucessão de merda no Brasil. Uma sucessão de merda. E quando chega em cima, na Suprema Corte, vocês terminam de cagar a porra toda. É isso que vocês fazem. Vocês endossam a merda”.
Bolsonaro entrega todos os peões que possam complicá-lo. É um jogador pusilânime e, sempre que encurralado, sacrifica os seus para proteger o próprio pescoço, dos filhos e da primeira-dama na linha de trás do tabuleiro. As reclamações de abandono são recorrentes. Como escarneceu das mais de 665 mil vítimas da Covid-19, imagine-se a consideração pelos seus peões tombados nos duelos. Roberto Jefferson, que se esbaldou em todas as fileiras governistas desde Fernando Collor, praguejou contra a democracia na defesa do rei do fascismo. Foi parar no xadrez pela segunda vez e por lá deve jogar uma daminha ou dominó. Por roubar no escândalo do mensalão foi preso pela primeira vez em 2014, mas ficou muito pouco tempo trancafiado, menos de 1 ano e meio dos mais de 7 anos da sentença. Voltou a ser preso em agosto de 2021.
A determinação foi do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito que aperta o cerco contra as milícias digitais que sabotam a democracia. Jefferson lamuriou-se em uma de suas cartas: “Bolsonaro é um homem honrado, mas não recolhe seus feridos. Sequer demonstra solidariedade com seus combatentes. Fiz duas cartas para ele. Nunca o PR (Presidente da República) mandou um cartão dizendo ‘saúde, minha solidariedade’. Ao contrário, ele se distanciou de nós manteve o silêncio obsequioso”.
Outra pedra extremista, devoto de golpes, do fechamento dos Poderes, da intervenção das Forças Armadas, e igualmente inábil, é Allan dos Santos, um reles blogueiro sacrificado no tabuleiro da indigência bolsonarista. Quando o xeque-mate contra ele ficou claro, o ex-seminarista fugiu para os Estados Unidos em busca de proteção. Não adiantou. O ministro Alexandre de Moraes determinou sua prisão preventiva e extradição.
No despacho, o ministro Moraes sustentou que Allan dos Santos deve ser preso pela prática de seis crimes: promover, financiar e participar de organização criminosa, calúnia, injúria e difamação, lavagem de dinheiro e incitação ao crime. Os canais de transmissão dos jogos ilícitos dele no YouTube foram fechados e a Justiça determinou o bloqueio de todas as contas de redes sociais vinculadas ao blogueiro e suas contas bancárias. Também foram proibidos os repasses de dinheiro das plataformas para os canais e contas do peão isolado.
O tempo também fechou para outro peão-envenenado contra a democracia, um tal Zé Trovão. Um arrivista anônimo, sequestrado da sua insignificância às vésperas dos ensaios golpistas do 7 de setembro de 2021. O caminhoneiro bolsonarista Marcos Antônio Pereira Gomes foi um dos principais apoiadores das ofensivas antidemocráticas. Bravateiro, ele pontificou paralisações e invasões ao STF e ao Congresso Nacional e começou a ficar conhecido por meio do canal “Zé Trovão, a Voz das Estradas”, hoje fora do ar. Marcos Gomes chegou a ter em torno de 40 mil seguidores. Zé Trovão também apareceu ao lado do cantor Sérgio Reis e parlamentares apoiadores de Jair Bolsonaro. Em 29 de agosto do ano passado, tornou-se alvo de uma investigação da Procuradoria-Geral da República e sua prisão preventiva foi decretada pelo ministro Alexandre de Moraes em 3 de setembro, por envolvimento em jogadas antidemocráticas. Foi capturado e atirado nas grades. Esse peão foi largado na estrada por Bolsonaro.
Sérgio Reis, depois de conspirar contra a democracia, piou fino e disse que não era bandido. O cantor havia convocado um ato no dia 7 de setembro de 2021 no qual os caminhoneiros iriam parar o Brasil em favor de Bolsonaro e pelo impeachment de Alexandre Moraes. O movimento golpista foi desmoralizado. Antes do arrependimento, Reis abusou de anotações para ameaçar as instituições: “Dia 8 eu, os caminhoneiros, os plantadores de soja, os fortes, os que carregam navios para fora, vamos ao Senado…Eles vão receber um documento assim: vocês têm 72 horas para aprovar o voto impresso e para tirar todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Não é um pedido; é uma ordem!”, dizia Reis no áudio. “Se vocês não cumprirem em 72 horas, nós vamos dar mais 72 horas, só que nós vamos parar o país Já está tudo armado. O país vai parar”, bravateou. A valentia ofensiva cedeu lugar a defesa contrita: “Não matei, bati nem ofendi ninguém. Não mereço ser preso. Eu errei, quem não erra? Quem não faz bobagem um dia?” Mais uma vez a ferocidade se transformou em covardia para evitar a prisão.
Sara Geromini, suposta dama líder de um movimento intitulado de “300 do Brasil”, foi a pioneira na abertura golpista e na prisão após ser sacrificada no primeiro gambito em falso do bolsonarismo. Ela, junto com outros 6, foi presa em junho de 2020 por tramar contra a democracia. Um bando de destrambelhados, que nunca ultrapassou 30 pessoas, chegou a atirar fogos contra a sede do STF. Ela, como Roberto Jefferson, publicou fotos armada nas redes sociais em gestos de intimidação contra os Poderes. Sara fazia provocações a Alexandre de Moraes. Em comentários ela disse que levantaria informações sobre o ministro; que procuraria pessoas próximas a ele, e que descobriria detalhes sobre a vida do integrante do STF. “Nunca mais vai ter paz na sua vida”, disse ela a respeito do ministro.
Depois de 9 dias de cadeia veio a contrição por integrar as colunas de Bolsonaro: “Tem horas que eu só queria gritar, gritar e gritar para alguém me ajudar, mas não existe esse alguém, sabe? Aí eu lembro e volto para os conselhos do meu psiquiatra e vou ter que levantar e vou ter que resolver os meus problemas. E não tem Bolsonaro para ajudar, e não tem Damares para ajudar”. Ela deu entrevistas posteriores afirmando que sua interlocução era com o general Augusto Heleno, o primado da ignorância e uma das torres golpistas do Palácio.
Outro bolsonarista terrivelmente evangélico, tinha um status maior no xadrez do capitão. Não se trata de um reles peão, mas o bispo Everaldo Pereira, presidente nacional do PSC. Ele e seus dois filhos, Filipe Pereira e Laércio Pereira, foram presos em agosto de 2020 na Operação Tris in Idem, que também determinou a derrubada do cargo e posterior impeachment do ex-governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, ex-aliado de Bolsonaro. O pastor Everaldo foi citado na delação premiada do ex-secretário de Saúde, Edmar Santos, por conta da influência dele no Palácio Guanabara e de movimentos sinuosos na saúde do estado.
A rainha do crime, Flordelis, também está atrás das grades e abandonada por Bolsonaro. Ela foi presa em sua casa 48 horas depois de perder o foro privilegiado de deputada federal. Flordelis é acusada de ser a mandante da morte do então marido, o pastor Anderson, assassinado na porta de casa em 18 de junho de 2019. Ela responde por homicídio triplamente qualificado – motivo torpe, emprego de meio cruel e de recurso que impossibilitou a defesa da vítima – tentativa de homicídio, uso de documento falso e associação criminosa armada. A quase totalidade da Câmara dos Deputados aprovou a cassação do mandato da ex-deputada.
Outro cavalo abandonado na chuva pelo estrategista Bolsonaro é o ex-líder Francisco Rodrigues. Flagrado ocultando perto de R$ 30 mil em dinheiro na cueca, ele foi expelido do xadrez governista no dia seguinte ao flagrante. O “Diário Oficial da União” publicou em edição extra no dia 15 de outubro de 2020 a mensagem de Jair Bolsonaro informando sobre a saída do senador Chico Rodrigues da vice-liderança do governo. A vingança dele foi apoiar a CPI da Pandemia.
Os peões sacrificados por Bolsonaro para preservar a linha familiar formam uma legião: Na largada foram Gustavo Bebianno (Secretaria Geral), Ricardo Vélez (Educação), Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Floriano Peixoto (Secretaria Geral). Em 2020, foi a vez de Osmar Terra (Cidadania), Gustavo Canuto (Desenvolvimento Regional), Luiz Henrique Mandetta (Saúde), Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), Nelson Teich (Saúde), Abraham Weintraub (Educação), Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) e Jorge Oliveira (Secretaria Geral da Presidência). Depois tombaram Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e, recentemente, o bispo Milton Ribeiro do MEC, onde os pastores avançaram vorazmente nas casas da propina, até em barras de ouro.
Nenhum dos peões sacrificados por Bolsonaro tem potencial para atingir a coroação prevista no xadrez, quando a peça atinge a oitava casa adversária e pode ser promovida a rainha, cavalo, bispo ou torre. As pesquisas mostram um desempenho medíocre dos candidatos bolsonaristas pelo país, assim como foi na disputa municipal de 2020. O próprio capitão vê seu reinado sitiado e tenta se reposicionar para evitar um xeque-mate do eleitor em 2022.
Seus movimentos erráticos – como o perdão a um criminoso sentenciado – não agrega adeptos e, ao contrário, afugenta o eleitor moderado. Tentar isolar o Judiciário, como fez o nazismo, não está funcionando. No STF ele esbarra em torres sólidas em defesa do Estado de Direito e das leis. O clã bolsonaro e seus peões, cavalos, bispos e rainhas golpistas, terão de responder, em breve, certamente no xadrez, pelos xeques descobertos contra a democracia e os cheques das rachadinhas e do peão-protegido Fabrício Queiroz.