No funeral de Júlio César, Marco Antônio agigantou-se como orador nas escadarias do Senado romano. Cirúrgico, seccionou com uma retórica aguda o espectro da traição, da conspiração e da morte, encarnado pelo nanico Marco Júnio Bruto, Brutus. Um tribuno modesto da Roma antiga, surpreendeu com um afiado libelo acusatório acerca da destruição premeditada de lideranças populares movidas por ambições ilimitadas e oportunismos liliputianos. No fórum romano a cobiça engatilhou o assassinato do imperador Júlio César.
Não raras vezes na história, a ganância arma as estocadas responsáveis por cicatrizes institucionais permanentes, hemorragias democráticas, sangramentos civilizatórios e feridas em nações por várias gerações. “Vim para enterrar César, não para louvá-lo. O mal que os homens fazem, a eles sobrevivem”, disse Marco Antônio escorrendo, pela primeira vez, a lâmina fina da ironia sobre as veias trêmulas do orador que o antecedera, Brutus, alegoria ancestral da perfídia e da pequenez. O “filho” alegava ter matado César com base na lei, na justiça, para eliminar um ditador: “mas porque ele foi ambicioso, eu o matei.”
A dramaticidade da versão teatral de William Shakespeare nas elegias a Cesar é afiada por sutilezas, sarcasmos, sentenças éticas e lições cortantes. A dialética fúnebre de Marco Antônio, precursora do “Eu Acuso” de Emile Zola, serviu para expor habilmente os criminosos, revelar os reais inimigos do povo romano e, sobretudo, reabilitar o imperador, vítima da emboscada, que voltou a ser venerado após a oratória de Marco Antônio. Todos os envolvidos na conspiração eram “homens honrados”. Brutus, o apunhalador, adorado como filho por César, “é um homem honrado”, escarneceu Marco Antônio. “Ó Justiça! Fostes morar com os animais selvagens, pois os homens perderam o raciocínio!”, cravou o general, revertendo o vozerio popular, comumente condenatório, justiceiro e precipitado. As 23 facadas de senadores para silenciar Júlio César foram “nos idos de março”, narra Shakespeare. O mesmo março contemporaneamente fúnebre, dolorosamente repetitivo para os brasileiros.
Dois mil anos depois, uma vergonhosa conspirata brasileira esfaqueou outros gigantes, o Brasil e o Estado Democrático de Direito. Os vilões, que se apresentavam como paladinos, travestidos da falsa honra, camuflados em togas impuras, maquinaram a morte política de um dos maiores líderes populares nacionais e que liderava todas as intenções de votos presidenciais em 2018. Os estiletes responsáveis pelos ferimentos são os mesmos: fraudes, manipulações, conluios, armadilhas e mentiras. A tocaia por aqui também foi adornada pelas adagas, punhais e facadas, reais ou metafóricas.
Assim como em Roma, a urdidura tupiniquim foi capitaneada por muitos homens honrados do Judiciário, do Ministério Público e consentida pelos outros Poderes. Na Justiça, lacerando as leis, escoriando os códigos e rasgando o sagrado direito de defesa, Sérgio Moro reencarnou Brutus e sacou da toga a adaga contra um inocente. No MP, Deltan Dallagnol, como o cúmplice Caio Cássio, desossava a instituição e operava outros conspiradores para caçar Lula, com incisões de “power points” cegos e outras perfídias pontiagudas.
A punhalada inaugural, pressagiando a tragédia que se avizinhava, foi desferida em 4 de março de 2016. Nesse dia o ex-juiz Sérgio Moro determinou à PF que arrastasse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio de uma condução coercitiva, para depor. O ex-presidente não havia recebido nenhum convite ou intimação anterior. Lula sofreu, naquele dia nefasto de março, o primeiro de muitos talhos desleais. Às seis da manhã de uma sexta-feira, a polícia chegou à sua casa em São Bernardo do Campo, revistou a residência e levou Lula para depor por suspeita de corrupção. Era a imagem que faltava para massificar o marketing da publicidade opressiva contra Lula, na busca do consentimento social para esfaqueá-lo até a morte política. Ela foi inaugurada nos idos de março e arrematada, com o auxílio do “establishment”, meses depois.
Ainda no fatídico março, no dia 9, caracterizando a orquestração conspiratória, o Ministério Público de São Paulo denunciou o ex-presidente por lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio. O MP-SP acusava Lula e sua esposa, Marisa Letícia, falecida em 2017, de ocultar a propriedade de um apartamento de luxo no Guarujá, litoral paulista. Em 16 de março, a então presidente Dilma Roussef nomeou Lula como ministro-chefe da Casa Civil, um posto que permitiria atalhar a ação persecutória e estancar a hemorragia do impeachment da ex-presidente, tramada no Congresso pelo prisioneiro Eduardo Cunha, outro homem “muito honrado”, mais “honrado” que os facínoras romanos.
Lula tomou posse no dia 17 março e, no dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes retalhou a nomeação. Era março e Moro vazou – ilegal e dolosamente – o áudio da ex-presidente Dilma Roussef com Lula, com o ânimo de insuflar as instituições contra a prerrogativa presidencial de escolher, nomear e demitir seus ministros. Ainda assim Moro se dizia um “homem honrado” e que a transgressão foi por amor ao Brasil. Brutus justificou o assassinato de César com a mesma forja da calhordice: “não foi por amar menos a César, mas por amar Roma ainda mais”.
Em 12 de julho de 2017 o então Sérgio Moro condenou Lula, sem um fio de prova, a nove anos de prisão pelo tríplex que pertencia formalmente e de direito a empreiteira OAS. Nos fóruns jurídicos seguintes todos os recursos tombaram, um a um. Até que, em 4 de abril de 2018, o Plenário do STF negou o habeas corpus ao ex-presidente Lula. No dia seguinte, depois de 18 horas do final do julgamento no STF, o Sérgio Moro decretou a prisão do ex-presidente Lula. No dia 7, após um segundo recurso negado no STJ, Lula e diversos apoiadores se reuniram em manifestações junto ao prédio do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo.
O ex-presidente anunciou que iria se entregar. Deixou o local, seguiu até a sede da Polícia Federal em São Paulo e foi levado para Curitiba. Desembarcou na capital paranaense junto com o crepúsculo democrático. Padeceu por 580 dias na cela da Federal. Março tinha se ido e Moro era anunciado ao povo como um “homem honrado”. Mas outros marços viriam e a farsa revelaria os verdadeiros ambiciosos.
Em meados de 2019 explodiram centenas de provas da tocaia tramada por Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e seus asseclas para condenar ilegalmente o ex-presidente. Não se tratava, definitivamente, de homens honrados, nem de conversas honrosas. As conspirações mostram diálogos repugnantes com um propósito político nítido: condenar Lula, escudar aliados e tomar o poder de assalto. Ao sentenciar Lula, Moro navalhou a democracia e concedeu o salvo-conduto para os fascistas. Premiado com o Ministério da Justiça foi, por 14 meses, um desonrado bajulador do capitão e fez vistas grossas para muitos delitos, de ministros, do próprio Bolsonaro e da família do chefe. Por ambição política, vendeu a alma ao diabo, se tornou um delator insidioso e, posteriormente, orixá dos corruptores. As digitais indisfarçáveis, exibidas pela Vaza Jato e a operação “Spoofing” impuseram uma revisão institucional para reparar, parcial e tardiamente, a infâmia. Era, novamente, nos idos de março.
O Brasil já estava destruído e fustigado por quarteladas dos “homens honrados”, entronizados por Sérgio Moro, o honrado original. O ministro Luiz Edson Fachin, lavajatista impenitente, decidiu no dia 8 de março de 2021 que a 13ª Vara Federal de Curitiba, que teve o ex-juiz Sérgio Moro como titular, era incompetente para processar e julgar o ex-presidente Lula nos casos do tríplex do Guarujá, do sítio de Atibaia, e em duas ações envolvendo o Instituto Lula.
Fachin tentou, em vão, evitar a vergonhosa declaração da parcialidade de Moro, confirmada dias depois pela Segunda Turma da Suprema Corte. Com essa primeira decisão, as condenações do petista foram anuladas e ele recuperou todos os direitos políticos. O plenário confirmou a decisão. A Segunda Turma do STF, também nos idos de março, confirmou que Sérgio Moro foi faccioso ao julgar Lula. A decisão foi ratificada no plenário posteriormente. A anulação das ações foi o reconhecimento de que Moro e a Lava Jato perseguiram Lula e nunca permitiram um julgamento justo. Lula não teve juiz, foi julgado e condenado por um acusador travestido de magistrado. Com as duas decisões do STF “nos idos de março”, os homens honrados estavam, juridicamente, desonrados, mas o Brasil estripado.
Sérgio Moro tem a índole dolosa dos verdugos e vem desencarnando há tempos. Seu funeral é seriado. Morre um pouco a cada dia e está exangue. A publicidade dos diálogos produziu mais de 50 derrotas da Lava Jato nas três esferas do Poder. No Judiciário, a cutelaria da Lava Jato amargou derrotas emblemáticas após as conversas se tornarem públicas. Caiu a prisão após a condenação em 2 instância e o ministro Alexandre de Moraes sangrou o acordo pelo qual a Lava Jato pretendia por as mãos sujas em R$ 2,5 bi dos recursos recuperados da Petrobras.
A condenação do ex-presidente da estatal, Aldemir Bendine, foi reformada por erro processual e alcançou outras 32 sentenças. A Segunda Turma do STF também excluiu a delação fajuta de Antônio Palocci contra o ex-presidente Lula, divulgada às vésperas da eleição presidencial. Em 2020, Sérgio Moro já havia sido declarado parcial no julgamento do doleiro Paulo Roberto Krug, no escândalo do Banestado. No TSE, a senadora Selma Arruda, a “Moro de saias” foi cassada por 6×1 e o STJ também abriu investigações sobre possíveis ilegalidades da Lava Jato contra ministros daquela Corte.
No Executivo, as giletes da Lava Jato foram oxidadas e, depois, Moro e caterva foram repelidos pelos infames que elegeram e protegeram. No primeiro corte, Moro perdeu o COAF. Também começou a sangrar após escapar o controle da Polícia Federal com mexidas nas superintendências, iniciadas no Rio de Janeiro. O comando da Federal foi o motivo do expurgo definitivo do governo. No estratégico cargo de Procurador-Geral da República, Moro queria um açougueiro da sua “equipe no MP”.
Nem ao menos foi consultado na escolha de Augusto Aras, pinçado fora da lista tríplice para engavetar. O CNMP puniu os excessos de Deltan Dallagnol por 2 vezes. Deltan também foi condenado a pagar uma indenização de R$ 40 mil a uma de suas vítimas. A Lava Jato de São Paulo se dissolveu. O chefete Dallagnol saiu com o rabo entre as pernas da gerência da operação de Curitiba no final de 2020. A operação também perdeu o fio no Rio de janeiro após as denúncias contra outro atirador de facas, Marcelo Bretas. Formalmente, após fazer o serviço sujo, a operação foi dilacerada por Augusto Aras e Bolsonaro.
No Congresso Nacional os reveses dos conspiradores se acumularam. No Senado, Sérgio Moro conspirava com o grupo autointitulado “Muda Senado”. Através dele, Moro tentou enquadrar o funcionamento do STF em uma PEC e, por 3 vezes, fracassou na tentativa de instalar a CPI da toga para constranger ministros do Supremo. Também não emplacaram 2 nomes ligados a Dallagnol para o CNMP.
A Lei de Abuso de Autoridade prosperou, inclusive com a derrubada de 18 vetos presidenciais. Moro e a Lava Jato boicotaram sistematicamente a proposta. O que Sérgio Moro batizou de “pacote anticrime” foi fatiado na Câmara dos Deputados, onde mantras fascistas foram cortados, como o excludente de ilicitude, a chamada licença para matar.
A cova sob os pés de Moro começou a ser aberta há tempos. O lavajatismo cegou e não viu. O sepultamento virá com a repulsa do eleitor, que vem atirando terra no ataúde presidencial, soterrando o nome de Moro sob sete palmos. Outros nomes testados na terceira via, que participaram do cortejo fúnebre coletivo, já foram enterrados: Luciano Huck, João Amoedo, Luiz Henrique Mandetta, Alessandro Vieira e Rodrigo Pacheco. Outros entoarão o mesmo réquiem.
A soma dos votos da chamada terceira via nunca ultrapassou o segundo colocado nas pesquisas. O melhor momento foi em outubro de 2021, onde todos os candidatos desse espectro totalizaram 23% dos votos, contra 29% de Bolsonaro e 40% das intenções em Lula. Moro é um dos últimos insepultos, um morto-vivo que pressente a marcha fúnebre se avizinhando junto com seu epitáfio.
A conduta de Sérgio Moro como magistrado, a exemplo dos tribunais do Santo Ofício, confundiu deliberadamente as figuras do acusador, investigador e do julgador, corrompendo a todos. Como político, tornou-se alvo do bote da serpente que ajudou a chocar: a tirania obscurantista do bolsonarismo. Candidato, tentou trapacear no papel de iluminista, mas o legado dele, além da hipocrisia análoga à de Brutus, remete ao terror francês, onde processos precários e genéricos levaram à degolas. Iniciado com a realeza absolutista – o rei Luiz XVI e a rainha Maria Antonieta -, a guilhotina terminou no pescoço do seu correspondente, ex-ministro da Justiça, George-Jacques Danton e Maximilien de Robespierre, intitulado incorruptível, líder dos Jacobinos e ideólogo do terrorismo de Estado. A farsa do homem honrado dessa vez não colou e o aço que ensanguentou a toga de César conspurcou as togas jurídicas indistintamente na emboscada a Lula que, agora em março, disse temer um novo atentado.
Remanesce a eterna reflexão sobre a natureza dos algozes. Os carrascos e conspiradores têm a existência atormentada pelo sangue esguichado de suas guilhotinas ou das adagas traiçoeiras. O que passa em suas cabeças quando os processos se invertem e eles caminham em direção ao patíbulo para o próprio sacrifício: orgulho da vida de impiedades; escusas àqueles anônimos e eventuais inocentes que imolou; indulgência aos poderosos, que agora querem decapitá-los; apelo a um processo isonômico; o suicídio como fez Brutus ou apenas a morte silenciosa e resignada como arremate de uma vida inumana e injusta? O último capítulo do funeral de Moro guarda uma afiação profética com a fala de Brutus nas exéquias de Júlio César: “guardo a mesma adaga para mim mesmo, quando a pátria decidir que deseja minha morte”. As pesquisas parecem aguçar esse desenlace.
Na história há vencidos que se eternizaram como heróis. Há também vencedores desonrados pelo impiedoso julgamento histórico. A humanidade registra triunfos com a acidez das derrotas, quando a conquista a um custo muito elevado não vale a pena. Entre as glórias vãs, a vitória de Pirro é a mais citada. Qual o destino do marechal Phillipe Pétain, oficial francês que aderiu aos nazistas nos 4 anos de ocupação da França? A vergonha, infâmia e a condenação à morte. Qual Joaquim a história reverencia? Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, redentor e libertário, ou o homônimo Joaquim Silvério dos Reis, um coronel de cavalaria, mais um dos reles delatores, pigmeus sacralizados pelos Torquemadas da Lava Jato? A operação também experimentou um triunfo efêmero e ácido, obtido através da usurpação, ilicitudes e transgressões.
É insano achar que repetindo os mesmos erros haveria resultados diferentes. A repulsa dos eleitores é uma punição branda. “Não venho contrariar o que ele (Brutus) disse. Só vim dizer o que eu conheço e sei”, acutilou Marco Antônio, esquartejando, com a navalha da ironia, os “homens honrados” e reabilitando Cesar naqueles ambiciosos idos de março.