“Nem ciência, nem a política no poder, nem os meios de comunicação de massa, nem negócios, nem a lei nem mesmo os militares estão em posição de definir ou controlar riscos racionalmente.” Ulrich Beck.
“Esperança não significa uma promessa. Esperança significa um caminho, uma possibilidade, um perigo”. Edgar Morin.
“O Brasil vai se reindustrializar com o dinheiro ambiental”. Jorge Caldeira.
Os lamentáveis eventos do dia 8 de janeiro de 2023 produzem leituras diferenciadas. A narrativa do golpe pode ser exagerada, não expressando mais que o estertor dos derrotados inconformados. A democracia avança, malgrado as panes institucionais, afirmam os mais otimistas. Nas Forças Armadas e na sociedade civil prevalecem o bom senso e a maturidade, superando o clima passional da eleição de 2022. Mas aquele 8 de janeiro pode também revelar, no “heroísmo” patológico de uns poucos extremados, o que subjaz de mais profundo na clivagem social cevada em muitos contextos adversos à estabilidade de todo o sistema de representação. Algo não resolvido permanece, incomoda, exigindo resolução. Talvez o futuro da democracia diante do problema do mercado predador hegemônico passe pelo país do futuro sequer imaginado em sua grandiosidade por Stefan Zweig.
O espectro golpista nesse sentido é parte do pensar a política de golpistas para além dos casos psiquiátricos e de possíveis organizações que os manietam, como diz respeito aos que em nome de bandeiras democráticas recuperam e ampliam, via retórica imediata e simplificada, o perigo da serpente fascista como forma de legitimação pós-eleitoral.
Ambas as leituras são possíveis e podem lograr confirmação histórica, como são possíveis delas colherem-se muitas falácias e, principalmente, colateralidades nas quais certas confluências (entre as forças envolvidas no que se toma, reciprocamente como “óbvio”, o conflito de classes) as condenem ao distanciamento da democratização, e da democracia. Nessa perspectiva o futuro torna-se mais nebuloso e talvez, mais trágico.
Na primeira narrativa, simplifica-se o complexo quadro em que os vitoriosos lograram conter a extrema direita, subestimando o fato que o país saiu das eleições mais dividido como nunca esteve e que a nossa tradição golpista é fato na nossa tortuosa vida política. É dizer, desconsideram ou cancelam o Outro num campo político na medida em que o reduzem duplamente: como força viva e como força viva adjetivada no carimbo do fascista (gerando o reforço do que lhe é reverso no espelho, um comunismo assustador, onipresente). Esse olhar duplamente caolho contribui não para a reconfiguração da linguagem da política, mas para a ampliação de sua fragilidade normativa no imaginário do campo do político.
Na segunda narrativa a ocupação física e simbólica dos três poderes da República guardam organicidade com algo muito bem planejado, com a cumplicidade de dirigentes tais quais os generais mais reacionários e o presidente com seus “meninos de bom recado” na Flórida e sicários por todo o país.
Analistas mais pessimistas colocam o paradoxo dessa situação criada dia 8 de janeiro de 2023: não responsabilizar os terroristas pode conduzir a estimular novas tentativas de golpe e responsabilizá-los em toda a sua teia hierárquica superior (leia-se, militares e empresários) pode significar ainda mais a radicalização social e a intervenção das Forças Armadas. Tudo dependendo do apoio internacional, dos interesses econômicos mais fortes, mas também dos encaminhamentos e insucessos imediatos e mediatos do governo federal.
Em ambas as compreensões e possibilidades há pressuposições marcadas por fatos e redirecionamentos ideológicos em tempos confusos, os quais reportam-se à visões de mundo dos séculos XIX e XX, desconsiderando que o século XXI vém expressando um turbilhão de sinalizações de mudanças sociais, desafiando culturas e políticas. Essa desconexão é de todos, anterior ao bolsonarismo e ao lulismo, hoje ampliada. À polarização real agregam-se elementos falsos da parte dos protagonistas mais evidentes, unindo ultradireita e esquerda tradicionalista de governabilidade transformista, ao produzirem um cenário redutor da compreensão do tamanho das crises e por consequência, políticas despotencializadores das forças libertário-emancipatórias.
A persistência de muitas desigualdades parece exigir algo a mais do que certas nomeações que inflam a retórica do lulopetismo (e alimentam os mais irados bolsonaristas) em nítido discurso revanchista nas disputas e consolidação do poder. Compreensível que Lula tente, desesperadamente, alinhavar uma base possível de governança, embora os acordos de sua “Revolução passiva” tenha pouco tempo para alicerçar as bases mundiais de um Brasil centro do novo modelo ecológico de desenvolvimento global. Como muito bem advertem Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekura e Luana Chabibb no livro “Brasil, um país restaurável, 2020”, o principal obstáculo a essa revolução não é o capital, mas a cultura em seus multivariados nichos ainda cristalizados nas formas de vida dos séculos XIX E XX, esquerdas clássicas, empresariado, universidades, forças armadas.
Lula é uma figura carismática e reproduz à sua maneira arcaísmos de uma esquerda tardia, na qual refletem-se dissociações entre ideias e práticas e anacronias sociais mais amplas típicas de um país historicamente marcado por violência e exclusões que explicam em parte a falta de continuidade e estabilidade das instituições. Nossa República nasce de um golpe militar, bom lembrar. Mas Lula ainda representa, no cenário inóspito de destruição cultural dos espaços públicos e da vida intelectual em geral, uma esperança em tempos melhores. Esperemos que Lula tenha a capacidade de mudar e estimular mudanças culturais entre os seus, o que é difícil, mas não impossível. O Brasil tem absolutamente condições de ser restaurado, no dizer de Jorge Caldeira, projetando-se em termos geopolíticos e ecológicos muito além de uma certa visão nacionalista capenga, capaz de fixar-se globalmente como futuro para uma vida melhor para todos, indivíduos e planeta, sob novas vivências solidárias.
Edmundo Lima de Arruda Jr.