O rascunho do golpe

Nos trabalhos escolares, por mais versões que sejam produzidas, a versão inicial pouco difere da final. Tal qual a minuta de um certo decreto que visava acabar com a democracia brasiliana

Meu filho adolescente talvez não saiba o que seja uma folha de papel almaço. Jovens leitores não o saberão, mas os que nasceram no século XX o sabem, principalmente aqueles que viveram antes da década de 80.

Naquela época, costumávamos fazer os nossos deveres escolares – aqueles que valiam nota – nas tais folhas pautadas de papel almaço. Normalmente, os mais dedicados faziam alguns rascunhos, para só depois “passar a limpo” o trabalho e apresentá-lo à professora, em sua versão definitiva.

Eu, por exemplo, tinha por hábito fazer várias versões dos meus trabalhos escolares, modificando algumas palavras, corrigindo erros de concordância e ortografia, para finalmente apresentar a versão definitiva à apreciação da professora, agora no papel almaço, com a letra mais bonita que conseguia.

É certo, contudo, que a versão final, em conteúdo, não diferia muito das várias versões contidas nos rascunhos, pois eram apenas cópias da produção final, cuja ideia principal era sempre mantida.

Lembrei-me do papel almaço quando ouvi a notícia de que um documento havia sido encontrado no armário de uma autoridade pública. Era um documento importante – um decreto ou um projeto de um golpe de Estado – e não me parece possível supor, tal como fora alegado, que se tratava de um mero rascunho, supostamente descontextualizado e totalmente divorciado da intenção primeira.

A ideia já estava na cabeça, ou melhor, nas cabeças, lapidada e trabalhada, a ponto de ser concretizada sob a forma de parágrafos e artigos.

A versão encontrada dentro do armário era a versão do papel almaço. A versão final – ou quase definitiva- a ser entregue à professora, à população, à Nação. Era o desejo final de seu criador ou criadores. A versão “passada a limpo” e provavelmente materializada em cópia impressa em moderna impressora a laser.

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As possíveis versões anteriores ou posteriores, ainda não encontradas, podem até ter variado na forma, mas não no conteúdo. Talvez contivessem a previsão de Estado de Defesa Geral – e não parcial – como constou. Talvez fizessem menção a Estado de Sítio. Talvez falassem em “Movimento em Defesa da Pátria”.

O que temos como certo é que se tratava de documento contrário à Lei, à Constituição, à Democracia. E idealizado por pessoas que gostariam de restabelecer nas escolas a matéria “Educação Moral e Cívica” e retirar do currículo escolar as disciplinas de História e Filosofia.

Meu filho adolescente talvez não saiba mesmo o que seja uma folha de papel almaço. Ou um mimeógrafo com stencil cheirando a álcool. Talvez nunca tenha ouvido falar em uma disciplina intitulada “Educação Moral e Cívica“ (sortudo!).

Mas – infelizmente – já sabe o que é uma tentativa de Golpe de Estado. Não conheceu o cheiro de álcool do mimeógrafo, mas já percebeu que um golpe sempre remete ao cheiro de pólvora.

A antiga professora de Educação Moral e Cívica talvez aprovasse a versão final espúria contida no papel almaço da atualidade.

Mas a sociedade há de reprovar essa versão.

Sempre.

* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada 

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