Deixemos de lado a legislação eleitoral do Brasil Império.
Foi examinada por Oliveira Vianna em Instituições Políticas Brasileiras, obra de leitura obrigatória para quem pretende conhecer as raízes do Brasil moderno. Destaco o parágrafo encontrado no volume I, onde se lê: “No período colonial, em matéria de eleições, tudo se passava normalmente sem violência, sem tumultos”. Proclamada a Independência, diz o ilustre autor, “esta fisionomia grave e pacífica das reuniões eleitorais desapareceu subitamente”. “Daí em diante é que se começa a formar a tradição dos tumultos e tropelias em torno das urnas, que durou todo o Império e penetrou na República” (Ed. Distribuidora Record, RJ, 1974, 3ª ed., págs. 258/260).
Na Velha República (1889-1930), o fato de ser secreto não significava que o eleitor gozasse de liberdade de escolha do candidato. Em regiões atrasadas predominavam o “voto de cabresto”, o “curral eleitoral”, a pistolagem, o poder dos senhores de engenho, listas e atas falsas, apurações trapaceadas.
O jurista Victor Nunes Leal (1914-1985), aposentado arbitrariamente do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Costa e Silva durante o regime militar, analisou a falta de liberdade eleitoral no clássico “Coronelismo, enxada e voto”, cuja primeira edição é de 1949. A obra, várias vezes reeditada, permanece atual porque o mandonismo e a corrupção não foram extintos sob a Constituição de 1988. Graças, porém, à evolução legislativa e à presença vigilante da Justiça Eleitoral, perdeu parcial validade a afirmação deixada pelo ilustre jurista e escritor de que “a corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e enraizados flagelos do regime representativo no Brasil”.
A observação talvez caiba às eleições estaduais e municipais, em regiões sob o domínio de coronéis e de famílias poderosas. Vamos encontrá-la, sobretudo, nas áreas rurais onde a ausência do Estado é suprida pela presença do latifundiário explorador do trabalho mal remunerado. Não é o caso, todavia, do Brasil urbanizado, industrializado, desenvolvido e de pluralidade partidária, onde é possível exercitar a liberdade de opinião nos comícios, palestras e conferências, ou por intermédio da imprensa livre e, mais recentemente, das modernas redes sociais.
Advertiu o professor Sampaio Dória (1883-1964), nos Comentários à Constituição de 1946, que “votar bem pressupõe, no votante, o conhecimento da missão que se atribui ao votado com o voto, o conhecimento do candidato para o exercício do cargo, e, por cima, no remate, não votar senão no que parecer ao votante o mais capaz.” (Ed. Max Limonad, SP, 1960, vol. 3º, pág. 562).
Com efeito, é fundamental que o eleitor entenda o significado e o poder inerentes ao voto direto e secreto. Quando não acontece, fica fácil convencê-lo a optar pelo menos capaz ou o mais corrupto. A fraude eleitoral, todavia, não se faz sentir na seção eleitoral, dentro da cabine indevassável. Percorre antes tortuoso caminho, que se inicia na composição da chapa de candidatos, quando a condição econômica, ou a popularidade de auditório prevalecem sobre os requisitos mínimos para o exercício do mandato disputado.
Examinem-se os currículos dos integrantes das casas legislativas municipais, estaduais e federais e dos ocupantes de cargos executivos. É sabido que o voto, em determinadas circunstâncias, pode ser permutado por cesta básica, promessa de emprego, par de calçados, camisas de futebol, ou conquistado pela ameaça de perder o emprego, de perseguição no serviço público, do corte do crédito no armazém.
Quem reúne coragem para enfrentar ameaças, ao chegar à seção eleitoral não tem motivo para temer o patrão, a polícia local ou federal, o delegado do partido, o cabo eleitoral. Registrará o voto na urna eletrônica, receberá o comprovante de votação e estará certo de se encontrar sob a proteção do sigilo.
Críticos do sistema informatizado de urnas eletrônicas jamais consultaram o Código Eleitoral, aprovado pela Lei nº 4.737, de 15/7/1965. Trata-se de legislação de alta qualidade. Disciplina com detalhes a disputa eleitoral. Dispõe, especialmente, sobre a fiscalização do local e do momento da votação, com o objetivo de garantir o anonimato do voto.
Conforme informações divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, às eleições municipais de 2020 compareceram 147 milhões de eleitores. Foram utilizadas 400 mil urnas eletrônicas, distribuídas em 5.563 municípios, “consolidando o Brasil como o país com a maior eleição informatizada do mundo”.
A Emenda Constitucional, apresentada pela deputada Bia Kicis, sofre forte rejeição da opinião pública. Na hipótese, contudo, aprovação, exigirá lei regulamentadora que respeite o sigilo do voto secreto. Não haverá tempo para aplicação às eleições de 2022. Basta consultar o calendário.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.