A decisão do governo de nomear um militar para o comando do Ministério da Defesa é um dos mais contundentes retrocessos políticos desde a redemocratização. Para além do aspecto simbólico, a decisão é a prova de que falhamos na duríssima e necessária tarefa de consolidar o controle civil sobre nossas Forças Armadas.
A ascendência civil sobre os militares é um imperativo constitucional e político que demoramos muito a conceber e implementar por aqui. Foi preciso o transcorrer de quase 15 anos desde que os civis voltaram ao poder para que um presidente da República, no caso Fernando Henrique Cardoso, reunisse as condições políticas e a coragem necessária para criar o Ministério da Defesa e, por meio dele, iniciar o longo processo de consolidação institucional da direção civil da área militar.
Num país de pouquíssima tradição democrática como o nosso, um assunto como esse sequer entrou no radar de parcela expressiva da sociedade. No entanto, na quase totalidade do mundo civilizado, e sobretudo nas democracias ocidentais, o controle civil e democrático das instituições militares é algo tão comum como consolidado.
Esse controle é uma consequência natural e lógica do princípio da soberania popular. Se elegemos, por meio do voto livre e direto, um representante para dirigir a nação, nada mais correto do que exigir dele o comando político de nossas forças militares que, nunca se pode esquecer, são as que possuem armamentos, poder bélico e, por isso mesmo, as que mais precisam de um estrito controle democrático do poder político.
No Brasil, em razão da última ditadura militar, nossos constituintes lançaram em nossa Constituição limites expressos para emprego das Forças Armadas em ações dentro do território nacional. Corretamente, restringiram sua atuação à defesa da soberania nacional em situações de ataque externo e a circunstâncias excepcionalíssimas de falência das instituições responsáveis pela segurança pública.
Nessa última hipótese, o rigor político e jurídico dos constituintes foi tamanho que o uso de militares das Forças Armadas internamente foi condicionado à provocação expressa de um dos poderes constituídos. Ou seja, para empregar contingentes do Exército, Marinha ou Aeronáutica em missões típicas de polícia é preciso haver pedido expresso dos chefes do Legislativo ou do Judiciário e sempre com autorização expressa do presidente da República. Infelizmente, um expediente que deveria ser excepcional tem sido constantemente utilizado pelos sucessivos governos com objetivos políticos, em flagrante desvio de finalidade e desrespeito à Constituição.
Mas, voltando diretamente ao ponto central desse artigo, a nomeação de um militar da reserva, que até pouco tempo ocupava o segundo posto mais importante do Exército, o cargo de chefe do Estado-Maior, é uma inflexão no processo de consolidação do Ministério da Defesa e do controle civil da área militar.
Iniciado em 1999, com a criação do Ministério da Defesa, esse processo sofreu um impulso significativo com a entrada de Nelson Jobim no comando da pasta, em meados de 2007. Com suporte político do ex-presidente Lula, Jobim iniciou uma etapa de reorganização institucional da Defesa. Juntamente com Mangabeira Unger, então ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, escreveu e implementou a Estratégia Nacional de Defesa (END), documento que fixou as bases para a total reestruturação das Forças Armadas e do próprio Ministério.
Juntamente com a END, o ex-ministro tomou uma série de medidas essenciais para tirar do papel o ideal de coordenação política da área de Defesa, que era flagrantemente prejudicada pela total falta de estrutura político-administrativa do governo para a tarefa. Entre elas, algumas das mais importantes foram a aprovação, via projeto de lei, de uma necessária estrutura de cargos para o Ministério, além da própria reorganização da pasta, realizada via decreto, com a criação de novas secretarias.
Todas essas medidas tinham como objetivo primordial fortalecer o controle civil. Tanto que, além das mudanças internas, Jobim trabalhou com êxito na arena política para a aprovação do projeto que se tornaria a Lei Complementar nº 97/99. Para se ter a dimensão da importância dessa norma, basta dizer que ela inseriu o ministro da Defesa na cadeia de comando das Forças Armadas, colocando-o numa posição hierarquicamente superior à dos comandantes militares, além de criar o Estado-Maior Conjunto Forças Armadas (EMCFA), instituição central no planejamento das operações militares.
Foi a partir da criação do EMCFA, a propósito, que as Forças Armadas passaram a exercer, de modo sistemático, a chamada “interoperabilidade” entre Marinha, Exército e Aeronáutica, favorecendo o emprego conjunto e integrado de efetivos e otimizando o uso dos meios militares e logísticos. Até então, cada Força singular privilegiava seu próprio planejamento estratégico, o que contribuía para dispersar esforços e recursos em missões e operações conjuntas.
No âmbito do Ministério da Defesa, uma das medidas mais relevantes no cumprimento do imperativo constitucional de direção política civil da área militar foi a criação da Secretaria-Geral, entregue a um civil, Ari Matos Cardoso. A criação dessa secretaria foi consolidada na gestão de Celso Amorim, ministro que deu continuidade às ações de fortalecimento da pasta iniciadas na gestão anterior. A criação da Secretaria-Geral foi um modo encontrado pela cúpula da instituição de equilibrar institucionalmente as sempre delicadas relações civis-militares. E também uma forma gerir as pressões da área militar.
As mudanças iniciadas na gestão de Jobim, e que tiveram sequência na gestão de Celso Amorim, embora inequivocamente importantes, naturalmente não foram suficientes para consolidar institucionalmente o controle civil. Várias medidas, boa parte previstas no campo normativo e nos documentos centrais de direcionamento da Defesa (Política e Estratégia Nacional), ainda não foram implementadas.
A iniciativa talvez mais importante é a criação da carreira de Analista Civil de Defesa. Prevista na Estratégia Nacional, é considerada fundamental para fortalecer o Ministério da Defesa. A ideia que inspirou a criação da carreira baseou-se no modelo adotado por outros países de tradição democrática que, cientes da importância da área para o conjunto da sociedade, e cônscios da necessidade do controle civil, estruturaram carreiras semelhantes e investiram na formação de especialistas civis, capazes de produzir massa crítica e subsídios para o planejamento e para o processo decisório ministerial.
Por aqui, o projeto de implementação da carreira de Analista sofreu enorme pressão contrária de parte do estamento militar, receoso da perda de espaço no nível político da Defesa. Esse projeto dorme atualmente nos escaninhos do Ministério do Planejamento ou de algum gabinete do Congresso Nacional. E, pelo andar da carruagem, por esses locais deverá permanecer.
Embora com críticas pontuais e com o habitual desconforto de serem comandados por civis, muitos militares de alta patente reconhecem os avanços decorrentes do fortalecimento do Ministério da Defesa. Muitos, em conversas privadas, e até mesmo publicamente, já manifestaram o entendimento de que, para a Defesa Nacional, é conveniente ter no comando da pasta um civil experiente, com trânsito e prestígio político junto ao centro decisório do governo e também junto ao Congresso. Esse prestígio se traduz, entre outros aspectos, em orçamento, algo que, há tempos, é um problema grave para as Forças Armadas.
O general Silva e Luna, agora alçado ao cargo de ministro da Defesa (tudo indica que sua interinidade vai durar até o fim do atual governo), tem prestígio perante seus colegas militares. Mas qual é sua experiência política? Qual o trânsito que ele tem junto ao presidente e aos ministros da área econômica, peças-chave nessa definição da repartição do dinheiro necessário à sobrevivência orgânica das instituições que compõem a Defesa Nacional? Como se posicionam a Marinha e a Força Aérea, já que um ministro civil sempre foi o fiel da balança na clássica disputa interna entre os comandos pelos mais diversos assuntos, incluindo orçamento?
Para além dessas considerações, voltemos ao ponto central. Demoramos décadas para implementar institucionalmente o controle civil e, agora, por razões meramente eleitoreiras, passamos uma banda no alicerce desse edifício tão caro à consolidação democrática em nosso país?
Entregar o controle político da Defesa novamente aos militares é um retrocesso em vários sentidos. A medida coloca o Brasil na contramão da História, no polo oposto ao do mundo democrático. Muitos dirão: mas o presidente da República ainda continuará no comando das instituições militares. Pois bem, até as plantas sabem que a formulação, implementação e monitoramento da política de Defesa depende de um ministério setorial fortalecido e comandado por civis. Um presidente sem o correto assessoramento desse Ministério corre risco de se tornar um títere, muito suscetível, por exemplo, a sucumbir a pressões corporativas quase sempre contrárias ao interesse público.
Não se defende, com isso, o total afastamento das Forças Armadas das deliberações, mesmo as políticas, sobre questões de Defesa. Apenas chama-se a atenção para o desvio do paradigma adotado como premissa para a construção do modelo previsto na nossa Constituição para esse setor. Esse paradigma prevê a profissionalização de nossos militares e seu distanciamento da política.
Compete a nós, como sociedade, dar a eles as condições necessárias para que possam cumprir, nos estritos limites constitucionais, seu papel de responsáveis pela defesa do país contra invasões externas.
Por outro lado, por dever de obediência ao marco legal e constitucional, e considerando a terrível experiência dos anos de chumbo, nossos militares deveriam permanecer longe da política, se atendo a realizar, quando chamados a isso, o assessoramento do ministro da Defesa e do presidente da República. Além, é claro, daquilo que é a própria razão de sua existência: o preparo para o emprego em situações de conflitos militares (não para serem substitutos das polícias em questões de segurança interna).
Lamentavelmente, o que se vê com decisões como a de hoje é o oposto disso. A medida é o ápice de um processo que se iniciou há pelo menos dois anos, de crescente militarização do Ministério da Defesa e de enfraquecimento da direção civil. A pasta é hoje praticamente um apêndice das Forças Armadas, com militares ocupando praticamente todas as posições mais importantes de direção e assessoramento.
A nomeação de um militar para o comando do Ministério coroa esse processo e enterra de vez, pelo menos até o fim do atual governo, qualquer possibilidade de avanço das iniciativas de ampliação do controle democrático da área. Juntamente com a entrega da segurança pública do Rio de Janeiro a um general, e com o deslocamento da competência da justiça comum para a justiça militar do julgamento de crimes praticados durante o emprego das Forças Armadas em ações internas, a entrega do Ministério a um militar compõe a tríade do desmonte do controle civil democrático.
E não podemos esquecer que, a cada dia que passa, aumenta de forma significativa a participação de militares, da ativa e da reserva, em diversos órgãos da administração pública, sobretudo em instâncias deliberativas e decisivas centrais da Nação.
*Luiz Rabelo é jornalista e bacharel em Direito. Entre 2010 e 2016, foi assessor especial do Ministério da Defesa e delegado brasileiro junto ao Centro de Estudos Estratégicos de Defesa da UNASUL (CEED), em Buenos Aires, Argentina.