O expressionismo e o nazismo são genuinamente germânicos. Alguns pensadores traçam um nexo direto entre os dois. A CPI da Pandemia do Senado vem iluminando o legado de ambos nos porões obscurantistas da era Bolsonaro, sobretudo no desprezo pela vida. Não há discrepâncias sobre a existência do gabinete paralelo, desumano e mortal. Uma estrutura paraestatal, integrada por pseudocientistas, médicos e charlatães que formularam políticas públicas fatais na pandemia, sem investiduras formais em cargos públicos. Todos os ministros que se opuseram ao estado paralelo tombaram. É a face real, ainda mais macabra, do aterrador “O Gabinete do Doutor Caligari”, o clássico inaugural do expressionismo alemão cuja estética é carregada por deformações, distopias, pânico, loucura, desespero, escuridão, pesadelos, medos, inseguranças e, sobretudo, mortes.
O Doutor Caligari encarnava um cientista que circulava em feiras apresentando um sonâmbulo, controlado por ele para cometer assassinatos. Três personagens desconfiaram da trama e um deles foi morto pelo sonâmbulo. Os protagonistas, a polícia e outros médicos, tentam capturar Caligari, o doutor Hyde na versão alemã. Ao final, descobre-se que ele é o diretor de um hospício, que trouxera a morte e o flagelo. O filme “O Gabinete do Dr. Caligari”, de 1929, é contemporâneo da República de Weimar que inaugurou o maior período de sombras e de terror da humanidade, estendendo o tapete vermelho para a barbárie do 3 Reich. Doutor Caligari é a metáfora exata da manipulação para cometer vários crimes, a partir das ideologias autocráticas e imperialistas do sistema alemão.
No Brasil, o gabinete da morte foi revivido em dois momentos estarrecedores revelados pela CPI. No começo de 2021 a cidade de Manaus recebeu a procissão sepulcral do Ministério da Saúde para recomendar o consumo de remédios comprovadamente ineficazes contra a Covid-19 e lançar um aplicativo, denominado Tratecov, que prescrevia cloroquina para qualquer consulta e todos os males. O gabinete do Dr. Jair Caligari em Manaus manipulava sonâmbulos, como o desqualificado ministro Eduardo Pazuello e uma secretária alcunhada de “capitã cloroquina”, de nome Mayra Pinheiro. Ao empurrar toxinas goela abaixo da população e desprezar o agravamento da pandemia, a reencarnação mortal de Caligari condenou brasileiros à morte por asfixia. Triste lembrança das câmaras de gás, concebidas por Adolfo Hitler e seus monstros da logística, como carniceiro Adolf Eichmann.
O risco de desabastecimento de oxigênio e a iminência do colapso hospitalar em Manaus foram antecipados pelas autoridades locais e pelos fornecedores dos insumos. Diante da obsessão irracional do bolsonarismo pela “normalidade”, o Galigari local, governador Wilson Lima, retrocedeu no decreto estadual e relaxou o isolamento. O resultado foi devastador. Concretizada a tragédia anunciada, o comando da Saúde foi negligente, omisso e demorou a agir para providenciar oxigênio ou buscar remoção de pacientes graves. Manaus se transformou no primeiro laboratório a usar seres humanos como cobaias após a segunda grande guerra, com experiências macabras, cruéis e criminosas, dignas de julgamento por um tribunal semelhante ao de Nuremberg.
Na reta final da CPI surgiu uma segunda e aterradora denúncia, também tendo humanos como cobaia, só que na esfera privada, mas com estarrecedoras vinculações públicas. A operadora de saúde privada Prevent Senior foi acusada, entre outras coisas, de ocultar óbitos por Covid-19 para promover medicamentos ineficazes contra a doença. Segundo o dossiê encaminhado à CPI, a empresa ocultou mortes de pacientes que participaram do suposto estudo realizado para testar a eficácia da hidroxicloroquina associada à azitromicina contra a Covid-19. Em documentos, constam os nomes de todos os participantes. Nove deles morreram, mas a Prevent Senior mencionou apenas dois óbitos.
A pesquisa, sem qualquer método científico, começou a ser feita no dia 25 de março de 2020. Em mensagens, o diretor da Prevent, Fernando Oikawa, orientava as cobaias do estudo a não avisar os pacientes e familiares sobre a medicação. Dos nove pacientes que morreram, seis estavam no grupo que tomou hidroxicloroquina e azitromicina; dois não tomaram os remédios; e o último não se sabe. Os médicos que trabalharam na Prevent Senior denunciaram ainda no dossiê que foram coagidos a receitar os medicamentos sem eficácia, distribuir o “kit Covid” e prescrever as medicações sem autorizações das famílias. Os profissionais disseram também que foram obrigados a trabalhar e atender pacientes mesmo estando infectados com o coronavírus.
O experimento desumano para testar a eficácia do coquetel mortal não obteve autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. O ensaio irresponsável foi reverberado enfaticamente pelo capitão Jair Bolsonaro, seus filhos e integrantes do gabinete paralelo. Em 18 de abril de 2020, Bolsonaro usou as redes sociais para citar e promover a experiência horrenda. O capitão disse que cinco pessoas que não tomaram cloroquina vieram a óbito, e que quem tomou o medicamento sobreviveu à Covid-19. Apenas mais uma de suas mentiras ou fraudes mortais. A operadora de saúde chegou a acumular 30% das mortes por Covid-19 no Brasil no início da pandemia e tem como público-alvo os mais idosos.
O dossiê, com milhares de páginas, detalhou ainda que a atuação do gabinete paralelo na Prevent Senior trabalhava pela intermediação dos médicos Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto, dois defensores do tratamento precoce, da imunidade de rebanho e do boicote às vacinas: “A comunicação e alinhamentos com o governo federal eram constantes. O presidente da República chegou a postar, em suas redes sociais, os números da pesquisa da Prevent Senior mesmo antes dela ser oficialmente publicada”.
Isso pode ser comprovado na referida postagem de 18 de abril de 2020, quando Bolsonaro escreveu “segundo o CEO Fernando Parrillo, a Prevent Senior reduziu de 14 para 7 dias, o tempo de uso de respiradores e divulgou hoje, às 1:40 da manhã, o complemento de um levantamento clínico feito”, anunciando que o estudo completo seria “publicado em breve”.
A advogada Bruna Morato, que representou 12 profissionais da operadora de saúde Prevent Senior, relatou à CPI que a empresa e médicos do gabinete paralelo fizeram um pacto para tentar validar a hidroxicloroquina como remédio contra a doença e, assim, evitar um “lockdown”. A advogada ajudou os profissionais que trabalharam para a Prevent Senior a elaborar um dossiê com as denúncias: “Existia um plano para que as pessoas pudessem sair às ruas sem medo. Eles desenvolveram uma estratégia: através do aconselhamento de médicos, esses médicos eu posso citar de forma nominal – Anthony Wong, Nise Yamaguchi, Paolo Zanotto – e que a Prevent Senior ia entrar para colaborar com essas pessoas. É como se fosse uma troca, a qual chamamos na denúncia de pacto, porque assim me foi dito”, disse a advogada.
De acordo com a advogada, cada médico teria uma atribuição específica dentro desse “pacto”. A Anthony Wong caberia “desenvolver um conjunto medicamentoso atóxico”, enquanto a médica Nise Yamaguchi “deveria disseminar informações a respeito da resposta imunológica das pessoas”. Já o virologista Paolo Zanotto deveria trabalhar na comunicação, falando a respeito do vírus e do tratamento “de forma mais abrangente” e “evocando notícias”.
A advogada afirmou ainda que a “aliança” com esse conjunto assessores transferiu “certa segurança” à Prevent Senior de que não sofreria fiscalizações por parte do Ministério da Saúde ou de órgãos vinculados à pasta: “Foi essa segurança que fez o interesse de iniciar um protocolo inicial certos de que não seriam investigados pelo ministério”, disse a advogada.
Aos senadores, Morato também afirmou que o diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Junior, tentou se aproximar do Ministério da Saúde após as críticas feitas pelo então ministro Henrique Mandetta sobre a alta quantidade de óbitos nos hospitais da operadora: “O ministro Mandetta não deu essa abertura, fazendo com que eles procurassem outras vias. Segundo informações, o doutor Pedro foi informado de que existia um conjunto de médicos assessorando o governo federal e que esse conjunto de médicos estaria totalmente alinhado com os interesses do Ministério da Economia”.
As experiências fatais com seres humanos remetem ao horror do 3 Reich nos campos de concentração nazista. Houve testes para monitorar a resistência de humanos, cobaias na testagem de medicamentos (exatamente como no Brasil da Prevent Senior) e também experiências nefastas em busca da eugenia, onde o carniceiro Josef Mengele realizou experiências macabras com mais de 1,5 mil gêmeos. Os experimentos redundaram no julgamento dos médicos e, como consequência, foi elaborado o Código de Nuremberg, em 1947. Um divisor entre a civilização e a barbárie, entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte. No Brasil o fim da fronteira entre a humanidade e os trogloditas foi solenemente abençoada pelo Conselho Federal de Medicina, uma nódoa irreversível.
O Código de Nuremberg opõe os homens às bestas-feras com mandamentos simples: O consentimento voluntário do ser humano é essencial; o experimento deve produzir resultados vantajosos para a sociedade; o experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; o experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessário; não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; o experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas; o pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.
No Brasil o Código de Nuremberg e o juramento de Hipócrates foram rasgados e violentados simultaneamente por uma gestão que soma muitos outros expedientes nazistas. Além do uso de cobaias humanas, por aqui temos simpatizantes, encontros de Bolsonaro com deputada herdeira das teses hitleristas (Beatrix Von Storch) e o governo incorporou muitos métodos do 3 Reich: hostilizar a imprensa, culpar os comunistas pelos fracassos, incensar a mitomania, adotar a mentira como método, propagandear falsidades, cultuar a morte, armar a população, militarizar os cargos públicos civis e disseminar do ódio contra todas as minorias, adversários, pensadores, escritores e a academia. O que o capitão diz, pensa e faz tem similitudes repugnantes com as teses centrais do nazismo. O experimento humano é o mais cruel e repulsivo. Todos em Nuremberg.