Há 130 anos a França condenava o capitão Alfred Dreyfus, sentenciado pelo crime de alta traição, acusado falsamente de repassar informações militares aos inimigos alemães. Dreyfus é referência mundial para simbolizar o terror de Estado e a perseguição a inocentes, mais que o próprio Herodes da era bíblica. A condenação foi uma conspiração grotesca que demandou 12 anos para ser desconstruída diante das reiteradas negativas e muitas chicanas dos algozes militares para eclipsar a injustiça.
A nova leva de diálogos atribuídos a Sérgio Moro e aos procuradores da Lava Jato nos remete a essa infame mácula da arbitrariedade. Deles jorram ilegalidades com odores pútridos e é exposto um conjunto estarrecedor de conspirações que violaram a ordem jurídica, o Estado Democrático de Direito e massacraram a sagrada defesa. Com a cruz nas mãos e o diabo no coração, corromperam a base republicana que fingiam defender.
O contexto, a atuação de agentes públicos, os desdobramentos e a trama são coincidentes. A condenação de Dreyfus dividiu a França entre Dreyfusards versus antiDreyfusards, despertou uma onda de nacionalismo, de intolerância (o antissemitismo) e colocou em xeque a instituição mais prestigiada no final do século XIX, as Forças Armadas. No Brasil de hoje seguimos escravizados à polarização e ao sectarismo.
Os ataques e ofensas grassam entre os extremos e a instituição no alvo do descrédito agora é parte do Ministério Público e o Judiciário lavajatista, populares até pouco tempo. A imprensa esteve no centro da crise francesa e de dois episódios no Brasil. Todos envolvem delações, fraudes, manipulações, conluios, armadilhas e mentiras, mimetizadas agora como fake news.
Emile Zola foi um dos mais talentosos e corajosos escritores franceses da sua geração, além de jornalista. Ele desencadeou a insurreição contra a farsa, diabolicamente maquinada nos porões sombrios das Forças Armadas francesas e sustentada por mais de uma década. Zola, desafiando o totalitarismo francês iniciou a demolição da patifaria orquestrada contra o insuspeito Dreyfus.
Em 13 de janeiro de 1898 inaugurava-se no L’Aurore, jornal literário parisiense da época, uma cruzada para reparar a infâmia, coroada com uma tramoia que encarcerou e degredou um inocente por quase 4 anos, Alfred Dreyfus, condenado em 1894. Um julgamento precário, superficial, de portas fechadas, sem prova alguma e burlas de toda ordem.
Em uma das mais célebres primeiras páginas do jornalismo mundial, Zola, dono de um texto ousado e indignado, dilacerava os carrascos e linchadores com suas 8 sentenças morais e jurídicas resumidas no imortal “Eu acuso”. A carta, dirigida ao então presidente francês, enumera, um a um, os órgãos públicos e os nomes dos facínoras pelos crimes de lesa-pátria, parcialidade, pareceres fraudulentos, provas forjadas, violação do direito de defesa, cumplicidade e manipulação: “Acuso o Ministério da Guerra de ter promovido na imprensa, particularmente no L’éclair e no L’Écho de Paris, uma campanha abominável, para manipular a opinião pública e acobertar sua falha.
Acuso por fim o primeiro Conselho de Guerra de ter violado o direito, condenando um acusado com base em um documento secreto, e acuso o segundo Conselho de Guerra de ter encoberto essa ilegalidade, por ter recebido ordens, cometendo por sua vez o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado”, diz um dos trechos da carta.
O oficial de artilharia Alfred Dreyfus era, até agora, um dos maiores exemplos mundiais da injustiça e da perseguição do Estado reforçada pela indispensável campanha de difamação dos pasquins da direita francesa de então. Ainda hoje quando uma injustiça é insinuada ecoa o veredito de Zola. O calvário de Dreyfus, inicialmente sentenciado à prisão perpétua, o trancafiou por longos anos e, depois, foi condenado ao degredo na infecta Ilha do Diabo (“inferno verde”) sob a falsa acusação de venda de segredos militares.
O verdadeiro culpado, um major viciado em jogatinas, já era conhecido. Mesmo assim, o caso se prolongou por mais de uma década. Imperava a marcha irracional da manada e o silêncio permissivo dos justos. A inocência absoluta só foi proclamada em 1906, 10 longos anos depois do serviço secreto francês interceptar uma carta de um adido militar alemão identificando o verdadeiro traidor francês.
Há uma perturbadora similitude entre o caso do capitão Dreyfus e a caçada ao ex-presidente Luiz Inácio da Silva. Nos dois casos é impróprio tratar a arapuca institucional com um eufemístico “erro” judicial. Nas duas conjurações descortina-se uma trama envolvendo agentes públicos confabulando na persecução de um objetivo espúrio e politicamente comum.
No caso Dreyfus, a maquinação deu-se nos porões dos tribunais militares, na instância que atenuou a pena em 1899 e anulação do veredito pela Alta Corte de Apelação em 1906. No caso Lula a persecução envolveu o Ministério Público que, pelos diálogos, sugere ter sido sequestrado por um juiz de primeira instância.
Os procuradores da República, que gozam no Brasil de um status mundial único, são chamados de “equipe do Moro”, numa profanação desinibida do Estado de Direito, onde se misturam e se corromperam reciprocamente investigadores, acusadores e julgadores. As conversas que vieram à tona e os fatos falam por si.
O velho impresso “L’Aurore” na atualidade brasileira é o site digital “The Intercept” que, a exemplo do serviço secreto francês, interceptou conversas repulsivas da Lava Jato. Foi primeiro veículo, driblando a falsa sacralidade da Lava Jato, a divulgar um pacote das promiscuidades entre Sérgio Moro e o MP. O Zola de hoje atende pelo nome de Zanin.
Cristiano Zanin é advogado que chefia a defesa de Lula e faz um meticuloso trabalho destroçando a acusação e a sentença contra seu cliente. O Ministério da Guerra, o Estado Maior e o exército franceses, no caso brasileiro, equivalem a setores do Ministério Público e um amontoado de procuradores hipnotizados pelo Torquemada da Torre de Curitiba. Sérgio Moro encarna o famigerado comandante Armand Mercier du Paty Clam. Clam instruiu, prendeu e apoderou-se do caso de Dreyfus com uma obsessão inquisitorial. Segunda Zola, Clam “maquinou e coordenou a coisa toda… o caso tornou-se seu caso”.
Menos do que os 4 anos de Dreyfus, Lula ficou encarcerado por 580 dias até o STF derrubar a prisão após condenações na 2 instância, revisando a interpretação anterior que permitia o cumprimento imediato da sentença. Essa foi apenas uma das derrotas de Moro depois dos vazamentos dos diálogos, a partir da metade de 2019, que começaram a desnudar os pés de barro da Lava Jato e seu comandante, Sérgio Moro que não se portou como juiz, mas como parte interessada. Ele perdeu outras 40 batalhas emblemáticas nos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. A maior derrota veio com a decisão da 2 turma, por 4 votos a 1, em permitir o acesso integral da defesa aos diálogos demoníacos entre Moro e sua “equipe” do MP.
Uma procuradora quer atingir o “Lula na cabeça”. Dallagnol fala em “arrancar” e “queimar a cabeça do nosso alvo” externando um pervertido “tesão” em escrever a denúncia. Em outros diálogos Deltan menciona “emparedar” os tribunais superiores e outras tramas contra ministros do STF: “Toffoli e Gilmar todo mundo quer pegar”. O dolo é escancarado.
Se o inferno de Dreyfus parece distante no tempo e ressuscita um método fascista aparentemente sepultado no passado, a lembrança remete a outro caso brasileiro de sórdida campanha, uma fraude com papeis invertidos, em 1992. O caso Ibsen Pinheiro. A nódoa indelével da infâmia, o selo eterno da humilhação pública, a vergonha do banimento político e social e a execração a partir de uma sentença moral injusta. Uma década de sofrimento, de amargura e, certamente, de insultos e desonras. A fama é efêmera, a infâmia eterna.
A revista “Veja” acusou Ibsen Pinheiro de corrupção. O então deputado mendigava fantasmagoricamente pelos corredores para que lessem o laudo de uma auditoria independente em suas contas bancárias, onde sua inocência era comprovada. Muitos não deram um pio. Uns por medo, outros por covardia e a maioria por conveniência. Pinheiro se deparou com atitudes esquivas, como se fosse um leproso.
Não era. Era só um inocente, como afirmou Zola, “o espectro do inocente que paga”; que paga uma sentença previamente fixada. Nada menos que a cassação injusta e indevida de um mandato legitimado pela vontade popular, a suprema humilhação, o degredo, o escárnio certo, invisível e uma década de humilhação.
Na França da época de Zola, 300 mil exemplares de jornal bastavam para fincar uma sentença moral. O potencial ofensivo foi multiplicado pelo número de veículos de comunicação e a internet, onde uma informação é reproduzida mecanicamente, sem tempo para crítica ou reflexão, e se dissemina pela sociedade como uma verdade circunstancial e temporária. As redes sociais ampliaram substancialmente o poder destrutivo da informação e também das fake news.
A infâmia no caso Ibsen Pinheiro não pode ser classificada de erro jornalístico porque o autor, depois de onze anos, confessou que o equívoco fora detectado a tempo e poderia ter sido evitado, mas a má-fé não permitiu. Para corrigir esta condenação bárbara e vil foi necessário que o jornalista autor da falsa denúncia, assombrado pelos fantasmas da culpa, reconhecesse que o mau jornalismo perpetrou uma das maiores injustiças no Brasil amparando-se em uma prova falsa.
A impostura foi levada à redação da revista por Waldomiro Diniz, nada menos que o ex-braço direito do petista José Dirceu. Não havia naquele momento nenhuma acusação formal contra Ibsen Pinheiro, ex-presidente da Câmara dos Deputados, egresso do Ministério Público e potencial candidato à presidência da República pelo PMDB.
Mas a revista o acusava de ter R$ 1 milhão de reais em suas contas bancárias, sem origem declarada ou conhecida. E não era verdade. Eram R$ 1 mil e a revista sabia muito bem disso. A informação era mentirosa, mas como a edição já estava rodada e com a desculpa desonesta de que trocar a capa causaria prejuízos, a direção da revista mandou que o repórter, segundo relato do próprio, encontrasse alguém envolvido na investigação que assumisse a declaração de Ibsen Pinheiro possuir R$ 1 milhão em suas contas.
A patranha foi bem sucedida e um deputado bancou a declaração falsa de um dinheiro inexistente. Depois Ibsen Pinheiro foi reabilitado. Por honra pessoal, conquistou mais um mandato de deputado depois da confissão do autor das falsas imputações. Depois se recolheu. Morreu em paz, com a consciência tranquila em sua casa de classe média em Porto Alegre. Nunca foi um milionário.
Passado mais de um século desde Dreyfus, continuamos a conviver com as tentativas de envenenamento da democracia e da instauração de procedimentos sumários, da construção de sanhas acusatórias, da obsessão por destruir, da sofreguidão por desmoralizar, da avidez para condenar.
A humanidade se transformou em uma máquina impiedosa de julgamentos fictícios e o que é pior, sob o silêncio permissivo dos bons. Muitos não terão meios ou tempo para reparar a perfídia, como Alfred Dreyfus, Ibsen Pinheiro e Luiz Inácio Lula da Silva. O redentor de Dreyfus, Emile Zola, condenado e exilado pela ousadia, não viveu o suficiente para ver o triunfo da própria causa. Morreu 4 anos antes. Seus ensinamentos são eternos: “Quando a verdade fica soterrada, ela toma corpo, e ganha tal força explosiva que, quando explode, leva tudo consigo”.