Tendo em vista os últimos acontecimentos, fica claro que o protoditador segue firme em seu propósito de darwinismo social; marcha avante com seu “projeto genocida”, na expressão de um ministro da Suprema Corte. Além de achar natural que provectos inúteis e desvalidos de toda ordem, em meio à pandemia, se explodam − como queria Justo Veríssimo, o inesquecível personagem de Chico Anísio –, o criptofascista das “mãos em arma” deliberadamente manda espalhar a morte, em prol de seus propósitos plutocráticos e eugênicos.
Melhor ilustração não poderia ser a exoneração do diretor do Ibama, que não teria impedido a defenestração dos garimpeiros ilegais e a destruição de seus maquinários (com os quais ditos meliantes operavam em terras dos ianomâmis) pelos zelosos fiscais daquela autarquia. Os intrusos atuavam bem próximos à aldeia de origem do jovem índio que morreu em Manaus, vítima da Covid-19, provavelmente infectado por aqueles forasteiros invasores.
E ainda dizem que selvagens são os índios. A pastora que sonha em salvar os silvícolas pela Palavra de Deus − ou pelo celular − e o justiceiro das araucárias teriam algo a dizer?
Há uma sensação de “vale a pena ver de novo”, se compararmos essa postura com atrocidades praticadas durante o regime militar, que levaram, em meio a constrangimentos, à criação da Funai, em 1967, pelos próprios hierarcas castrenses de plantão. O mito, talvez, tenha ouvido na academia (será?) a respeito do estratagema de Sir Jeffrey Amherst para, no cerco ao Forte Pitt (Pennsylvania), em 1763, derrotar as nações indígenas que fustigavam os colonizadores britânicos: doar aos nativos cobertores e lençóis contaminados com o vírus da varíola. Talvez tenha ouvido e gostado da ideia.
O que ou quem poderá detê-lo?
Ao anunciar a demissão do ministro da Saúde e a escolha de seu substituto, o autocrata, já não mais enrustido, enfatizou que a preocupação com a vida é a sua prioridade. Só faltou repetir os versos da canção de Gonzaguinha: “Ninguém quer a morte; só saúde e sorte”. Mas emendou: “Preocupação com a vida e com os empregos”. Simples assim.
“Fala sério!”, diria o saudoso Bussunda. Sua preocupação é garantir a reprodução do capital. Se não há venda de mercadorias, não pode haver lucro: business as usual é o que reivindicam seus acólitos ignorantes e tresloucados.
Um governo que convive, passivamente, há pouco mais de um ano, com um desemprego na ordem de 12 milhões de pessoas, cifra que se eleva a 30 milhões, se somarmos os desalentados; que aceita como natural um exército de precariados em torno de 50% da mão de obra ativa; que despreza qualquer política industrial, ou seja, o caminho para se criarem empregos de qualidade; e que acha que a receita é reduzir custos da força de trabalho, sem se preocupar se haverá recursos para a seguridade social ou renda nacional para o consumo de mercadorias e serviços gerados, não pode estar preocupado com o desemprego. Cada um que se vire!
O tirano parece não enxergar que o capitalismo não sobrevive se não houver seres humanos que, dispensados de produzi-los, pelo menos adquiram os bens e serviços que robôs e outros artefatos de inteligência artificial venham lançar no “mercado”, esperando que primatas venham a consumi-los. No dia em que só os próprios replicantes restarem como prováveis consumidores, seremos todos dispensados de viver: inclusive ditadores. Inclusive os plutocratas, que terão, todos, destino igual ao do Dr. Eldon Tyrell, o CEO da Tyrell Corporation, em Blade Runner.
O condottiero, com a devida vênia, há muito siderado pela ideia de transformar o Brasil em um destino turístico “relevante” (cassinos, resorts, caça e pesca, scuba diving e desfrutes sexuais) comporta-se como Larry Vaugham, o prefeitinho de Amity Island, o paradisíaco balneário do primeiro blockbuster de Spielberg: Tubarão. Aquele alcaide, desesperado com a perda de faturamento pelo comércio local (e de receitas para os cofres públicos), decorrente do fechamento das praias, em face da ameaça de um grande tubarão branco nas redondezas, manda que tudo volte ao normal quando um mero tubarão-tigre é capturado. A despeito das advertências, afirma que Amity Island não podia parar e determina que as atividades fossem retomadas. Quem já assistiu ao clássico conhece o resto da história: deu no que deu.
O problema é que, agora, o oportunista predador não tem o tamanho de um gigantesco tubarão branco. É insidioso e mal pode ser detectado pelos mais potentes microscópios eletrônicos existentes sobre a face da Terra. Mas mata mais, muito mais que todos os cardumes de tubarões brancos havidos nos oceanos.
Sobre o guia mítico deverá recair toda a responsabilidade de se preocupar mais com os lucros do que com a vida. Quando as TVs e as redes sociais passarem a exibir as covas em valas comuns, cheias de cadáveres, quando os caminhões do Exército forem mostrados, lotados de defuntos indigentes, não creio que o farol da estupidez perceba ter sido um erro achar que o Brasil poderia ser como Amity Island. Mais provável que pense que foi um erro não ter censurado a imprensa antes, tal como seu parceiro de delírio que comanda o Turcomenistão.
* Thales Chagas Machado Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG