O bairro da Luz era aprazível até a primeira metade do século passado. Tendo o Palácio dos Campos Elíseos como sede do governo estadual, ostentava imponentes casarões construídos pelos barões do café em alamedas e ruas arborizadas. A partir dos anos 40 e 50, porém, algumas quadras ganharam destaque pela concentração do baixo meretrício, de salões para filmes pornográficos, musicais e peças do mesmo gênero.
A decadência se acentuou com a construção do “minhocão” pelo então prefeito Paulo Maluf. A obra visava aliviar o trânsito das avenidas São João e General Olímpio da Silveira. Provocou, entretanto, a desvalorização de prédios vizinhos, com irrecuperáveis prejuízos aos proprietários. O empobrecimento rebaixou a qualidade de vida no entorno do viaduto, sob o qual passaram a se alojar moradores de rua e drogados.
Os primeiros esforços no sentido da extinção da cracolândia foram desenvolvidos durante a rápida gestão do prefeito José Serra (1/1/2005-31/3/2006). Bares, pensões e hotéis envolvidos no tráfico de droga, viram-se forçados a encerrar o negócio. Imóveis degradados foram desapropriados, com o objetivo de tornar a região da Luz atrativa a investimentos mobiliários.
É necessário procurar entender os motivos da sobrevivência da cracolândia. Do meu ponto de vista, o problema persiste por insolúveis atritos de competências estaduais e municipais, provocados pela Constituição de 1988 no capítulo sobre a Organização do Estado.
Ordena o Art. 28, § 1º: “São reservados aos Estados as competências que não lhe sejam vedadas por esta Constituição”. A Segurança Pública é atribuição dos Estados membros da Federação. Assim determina o Art. 42, complementado pelo Art. 144, §§ 4º, 5º, 6º, 7º.
Prescreve a Lei Superior que a Polícia Civil, dirigida por delegados de carreira, exerce a função de polícia judiciária e investiga a autoria de infrações penais, exceto cometidos por militares. À Polícia Militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Os Municípios, por sua vez, “poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção dos seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei” (§ 8º).
No caso da cracolândia, compete à Polícia Civil elucidar o tráfico e a comercialização das drogas usadas por viciados. À Polícia Militar responde pelo policiamento ostensivo e preservação da ordem, se necessário com a prisão de traficantes. Se operar dentro dos limites constitucionais, à Guarda Civil Metropolitana nada restará a fazer, além de acompanhar.
Conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), guardas metropolitanos e municipais não devem efetuar perseguições e prisões. Dentro dos limites da Constituição, limitar-se-ão à proteção dos bens, serviços e instalações do Município.
A Lei nº 13.022, de 8/8/2014, regula a organização e atribuições das guardas municipais. Como lei ordinária, submete-se às nomas constitucionais. Não integram, portanto, órgãos de segurança, conforme decidiu o STJ.
No caso da cracolândia, a remoção, recuperação ou internação dos moradores drogados seria de competência do Município, por se tratar de “assunto de interesse local” (Art. 30, II, da Constituição). O emprego de força, quando necessária, ficaria a cargo da Polícia Militar e as investigações da Polícia Civil, ambas do Estado. A defesa dos acusados pobres, da Defensoria Pública. Conforme a interpretação do STJ, a Guarda Civil Metropolitana, apenas em casos radicais poderia realizar abordagens e buscas pessoais. Caracterizada conduta criminosa, atuarão o Ministério Público, a OAB, e o Poder Judiciário, conforme os princípios do devido processo legal. Considerem-se, ainda, as intervenções constantes da Igreja e de órgãos de defesa dos direitos humanos.
É sabida a impossibilidade de atuação coordenada, harmônica, conjunta, quando se fazem presentes tantos protagonistas, cada qual com comandos e objetivos específicos. Em meio à tamanha diversidade de competências, é quase impossível enfrentar o grave problema social representado por milhares de moradores de rua e viciados.
Danem-se comerciantes e indefesos moradores na região da cracolândia. Continuam abandonados à própria sorte.
– Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.