Na minha curta passagem pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), como secretária-executiva, no início do governo Lula, em 2003, pude constatar o quão o cidadão brasileiro, em geral, desconhece o funcionamento da máquina administrativa e o quão ele ignora a destinação de vultosos recursos que são geridos pelo Estado, os quais, em tese, se destinariam a políticas públicas de amplo alcance. Isso facilita as coisas para empresários que, diria Delfim Netto, “mamam nas tetas do governo” para alavancar seus negócios; e para políticos sedentos, capazes de identificar fontes disponíveis para satisfação de interesses de suas clientelas.
E a imprensa, cuja mais nobre missão é, precipuamente, tornar transparente e de fácil entendimento para população atos administrativos opacos, acaba por não ajudar a que “tenebrosas transações” venham à tona e sejam submetidas à crítica da opinião pública. Ademais, os governantes tudo fazem para impedir a instalação de comissões parlamentares de inquérito, a atuação autônoma da polícia e o exercício independente do Ministério Público, o fiscal da lei. Temem a reverberação das investigações pela mídia em geral. O esforço dos governos em pouco revelar (levado ao paroxismo na atual gestão federal) e a difusão ilimitada de “fake news” nesse admirável mundo novo digital tornam o trabalho de jornalistas ainda mais difícil. A excelente série de reportagens, publicadas recentemente pelo “Estadão”, sobre o orçamento paralelo destinado a agradar o Centrão, torna-se uma exceção, quando deveria ser a regra.
Seria interessante analisar as motivações que levam os presidentes da República a assinarem medidas provisórias, já no primeiro dia de governo, mudando radicalmente a estrutura orgânica adotada no governo anterior e, ainda, as razões pelas quais, ao longo de seus mandatos, promovem ajustes a torto e a direito no organograma da Administração Pública. Alerto que compreender essa parafernália não é fácil. Exige paciência. A boa pesquisa, no entanto, pode levar a conclusões curiosas. É patético ver o quanto o atual presidente da República, na lida com a pandemia de covid-19, simplesmente desdiz ou afronta, a todo momento, as prescrições que dispôs, com o próprio punho, na medida provisória que se converteu na Lei n. 13.979, de 2020. Ele, que a toda hora se vangloria ao dizer que “tem a caneta”, deve se assustar quando algum assessor lhe diz: “Mas o senhor assinou isso”!
De repente, parece que tudo explode de uma só vez como agora está acontecendo no governo do “mito”. Achava-se todo-poderoso, enviado por Deus e, por vias das dúvidas – se esse faltasse ou se estivesse muito ocupado -, auxiliado de perto, não por uma legião de querubins, mas pelas Forças Armadas.
Nada disso, per se, importa porque o buraco é mais embaixo. Governar é muito complicado. É preciso manejar com destreza o organograma, de maneira a que a grana disponível sempre esteja acessível a quem se precisa adular para que se possa governar. Tudo indica que, para o “mito”, a estrela da vez não é a banca, mas aqueles que, no Congresso Nacional, não vão deixar a peteca cair, pelo menos até que as vozes das ruas se tornem mais roucas. Para os parceiros, vasculham-se cargos para “petequeiros”, assim dizia Roberto Jefferson, e recursos aos borbotões, com um único desiderato: não deixar que o governo se acabe. Não sou eu quem diz isso, mas o próprio “mito”.
E, revisitando minha experiência no MTE, aguça minha curiosidade saber, parafraseando Caetano, “a que será a que se destina” a ressurreição daquele ministério, tendo por timoneiro o deputado Onyx Lorenzoni. Deixando de lado o drama dos mais de trinta milhões de desempregados, desalentados e subocupados, já se postam na rinha, de um lado, o “posto Ipiranga” e, de outro, o “coringa”, na briga pelo controle dos dois maiores fundos públicos: o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
São fundos supostamente geridos a favor dos trabalhadores, controlados a favor desses, e que envolvem muito dinheiro. Deles dependem o seguro-desemprego, o abono salarial, as políticas de habitação popular, saneamento básico e mobilidade urbana. De quebra, no caso do FAT, ainda há o repasse para reforço de caixa do BNDES. É bem verdade que, com a Reforma da Previdência, as transferências para o BNDES foram reduzidas significativamente. Isso é fruto do desejo dos ultraliberais de acabar com qualquer vestígio de keynesianismo no atual governo. As “sobras” não se destinariam a robustecer políticas de geração de emprego e renda, mas a cobrir o déficit primário nas contas do governo. Repito: é muito dinheiro! No caso do FGTS, são notórias as desavenças entre “o posto Ipiranga” e o “mito”, que determinou ao seu “czar” da Economia que abrisse as burras em favor do ministro Rogério Marinho, no esforço de melhor seus índices de aprovação no Nordeste.
Ao tempo em que estive no MTE, que repassava recursos do FGTS ao então Ministério das Cidades, a sede ao pote era tanta que Lula foi levado a dar um pontapé nos fundilhos de seu companheiro de jornada, Olívio Dutra, para entregar de bandeja a dinheirama ao PP, o atual e sempre governista “Progressistas”. Ali caiu por terra o belo trabalho da equipe de Ermínia Maricato em torno de uma reforma urbana abrangente e consistente.
Mas, como disse antes, ando muito curiosa. É que, segundo a imprensa, a ideia que circula no governo é a de transferir o ônus do seguro-desemprego ao “Sistema S”, menina dos olhos das entidades do sistema confederativo empresarial. Essa eu pago pra ver. Valeria a pena alguém contar um caso que se passou no governo Figueiredo, já que o “mito” adora paradigmas da ditadura militar. Pressionado com o “rombo” da Previdência Social, eterna desculpa para a dívida pública, entra governo sai governo, o então presidente da República editou um decreto-lei, transferindo recursos do “Sistema S” para a Previdência Social. De pronto, os empresários boicotaram a comitiva de uma viagem presidencial à Colômbia. Foi um Deus nos acuda!!! E, pela primeira e única vez, em toda a ditadura um decreto-lei foi logo revogado, por pressão do setor empresarial.
A questão é: quem dará as cartas? Seria o “mito”, os militares, os políticos do Centrão? Quais segmentos empresariais poderiam, ainda, exercitar o poder informal do veto? Uma coisa é certa. Enquanto o jogo se passar “nas quatro linhas”, o Centrão exercerá um papel destacado. Desde Sarney, passando por Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma ou Temer, sempre manobraram em favor de interesses que orbitavam em torno dos umbigos dos políticos que o compõem. A despeito da marchinha do General Augusto Heleno, na convenção do PSL que escolheu Bolsonaro como candidato a Presidente, entoando afinadamente (diga-se de passagem) – “Se gritar ‘Pega Centrão’, não fica um meu irmão” – ninguém pega o Centrão.
O Centrão sempre faz com que os presidentes da República dancem conforme a música que tocam…