Jaime Lerner, o urbanista que mudou um conceito da convivência, o filosofo da cidade. Ele vivia fora de seu tempo, no futuro, vendo o que não aparecia aos viventes comuns. Numa época em que a vida urbana era execrada e estigmatizada, o arquiteto paranaense chega com uma nova visão, propondo soluções para as opressões da “selva de pedra”. Vinha de Curitiba, antes tida como a capital mais provinciana e insossa. Ao final de sua passagem pela prefeitura (três vezes) e do governo de seu estado (duas vezes), sua metrópole brilhava no mundo com um exemplo de cidade humana, culta e cosmopolita. E as cidades mudaram de túmulo da cultura para solução de um planeta superpopuloso.
Conheci Lerner no Rio de Janeiro, em 1983, quando nos aproximamos dele, meu colega de redação da Gazeta Mercantil, o jornalista capixaba (de Cachoeiro) Valério Fabris, e eu, na casa de música People, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Ali, sozinho, numa mesa, ouvia contrito o som dos grandes músicos cariocas que se apresentavam como fixos ou em “canjas”. Nesses tempos a música do Rio de Janeiro, a bossa nova, convertia-se no “it” mundial que é hoje, suplantando o jazz norte-americano nos próprios Estados Unidos. Lerner era um ouvinte atento dessa vanguarda.
Depois dessa temporada carioca, levado pelos ventos de liberdade que sopravam naqueles momentos, mergulhou na política e se converteu num fenômeno eleitoral em seu estado. Foi duas vezes governador (sem reeleição, proibida então), e pela terceira vez prefeito de Curitiba. Tudo isto sem deixar seus hábitos de intelectual moderno. Seu círculo era eclético, mas pouco político, embora dois de seus convivas tenham se convertido em políticos relevantes no Paraná, o atual prefeito da capital, Rafael Greca, e o seu homem de finanças, que foi prefeito e deputado, Cássio Taniguchi.
Amizades dentro e fora da política
Aos sábados pela manhã, não dispensava o encontro com sua turminha, nos botecos, um costume típico de sua geração. Ali diante dos tira-gostos reunia-se uma “galera” inigualável e inesquecível, em torno do Jaime, como o próprio Valério, que se mudou para Curitiba como diretor da sucursal da Gazeta Mercantil, e outros como o poeta Paulo Leminski, o cartunista Dante, mais Buchmann, Mercer, Lechinski, Alceu, Lachini, Elaine, Fani, Margarida e vários (mas não muitos) outros que me fogem à memória. Não me cansava de viajar no fim de semana ao Paraná só para estar com esse grupo brilhante.
No Rio, Lerner morava na cidade a convite do governador recém-empossado, Leonel Brizola, ocupando o cargo de secretário do Ano 2.000. Ou seja, era um enviado do futuro que desembarcara de uma máquina do tempo para deter a decadência da Cidade Maravilhosa. Missão impossível de um gaúcho há pouco chegado de volta de 21 anos de exílio e de um paranaense sonhador.
Em comum os dois tinham graduação em Engenharia Civil pelas federais do Rio Grande do S
ul e do Paraná. Lerner com segunda faculdade na Arquitetura de Curitiba. Já era um urbanista famoso, um tanto desconfiado pela esquerda, pois fora prefeito de sua cidade no regime militar, duas vezes. Entretanto, Brizola o conhecia e confiou nele, levando-o para o esquerdismo moderado do PDT. Nessa legenda, Lerner ficou o quanto pode, sempre apoiado por seu mentor, que o considerava, segundo se dizia, “o filho que Brizola quisera ter”. Além disso, o político “cariúcho” não cansava de dizer que Lerner seria seu sucessor na Presidência da República. Nenhum dos dois chegou lá. Tal como Leonel, Lerner tinha seu sonho para o Brasil.
No Rio, o arquiteto paranaense conviveu e interagiu com a maior expressão dessa especialidade no mundo, e quando voltou à sua cidade, já como governador, deu o nome de Oscar Niemayer ao principal museu. O urbanista trabalhou ao lado do lendário Lúcio Costa, o planejador de Brasília, então “dono” da Barra da Tijuca, um subprefeito com todos os poderes que lhe atribuiu Brizola, participando do desenvolvimento daquele bairro da Zona Oeste do Rio, uma visão de futuro implantado nas franjas de uma cidade tetracentenária.
Em Porto Alegre, também deixou sua marca como um dos idealizadores do Parque Marinha do Brasil, devolvendo à capital gaúcha a beleza da orla do rio Guaíba, que estava soterrada por um aterro inconcluso, curiosamente iniciado na prefeitura de Leonel Brizola, seu mecenas na capital fluminense.
Referência em arquitetura e urbanismo
Quando faleceu, Jaime Lerner era uma figura de referência mundial, um orgulho do Brasil, embora pouco reconhecido em seu País. Presidente da União Internacional de Arquitetos, parava o trânsito onde chegasse pelo mundo a fora. Porém, pouco fez para se converter nessa figura ciclópica – sem trocadilhos.
Começou humildemente como o jovem líder de uma equipe de profissionais multidisciplinares (quase todos daquela lista que apresentei acima, como velhos amigos de copo e de papo), que integravam o recém-criado Instituto de Planejamento Urbano de Curitiba, em 1965. Em 1970, o então prefeito Omar Sabbag teve de se afastar do cargo, não havia vice-prefeito, o cargo ficou vago e quando se deu conta Lerner estava nomeado pelo então governador Leon Perez. E por aí foi até chegar às alturas de governador do Paraná. Seu legado está presente nas grandes cidades brasileiras (e do mundo). Um gigante brasileiro.