Causa-lhe estranheza, prezada leitora, prezado leitor, o fato de o ministro da Justiça, Sergio Moro, não haver se pronunciado ainda sobre a decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, de suspender, em todo território nacional, todos os processos judiciais em andamento no país que versem sobre o compartilhamento, sem autorização judicial e para fins penais, de dados fiscais e bancários dos contribuintes? A mim, não. É a famosa situação conhecida como “sinuca de bico”, na qual o jogador não encontra saída para a tacada que deve executar.
Ainda que a ordem do Ministro Dias Toffoli tenha sido expedida em um recurso extraordinário específico – tramitando em segredo de justiça − que só deverá ser julgado em novembro deste ano, o fato de ter sido reconhecida a “repercussão geral do tema” implica colocar sob a redoma do prévio controle judicial, dentre tantas apurações, as investigações em curso, movidas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em desfavor do Senador Flávio Bolsonaro.
Aliás, o ministro Dias Toffoli, que é relator do mencionado recurso extraordinário, somente decidiu nos termos anteriormente referidos após a defesa do Senador Flávio Bolsonaro ter pedido “o seu ingresso no feito” (Petição/STF nº 41.615/19), vale dizer, ter requerido o reconhecimento de que sua situação seria idêntica àquela que motivou a convocação de todos os juízes da Suprema Corte para “pacificar” as interpretações da lei.
Coincidência?
No final de 2018, de acordo com mensagem veiculada via Telegram, conforme apurou o The Intercept Brasil, o Procurador da República Deltan Dallagnol já antevia o tamanho do abacaxi que estava por vir, parafraseando Drummond: “E agora, José?”, desabafou Dallagnol aos colegas.
Na sequência, discorreu sobre o dilema tático do antigo titular da 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba: “Moro deve aguardar a apuração e ver quem será implicado. Filho certamente. O problema é: o pai vai deixar? Ou pior, e se o pai estiver implicado?”. Enquanto o ministro da Justiça − antes tão zeloso em manter o Coaf sob sua alçada para otimizar o combate ao crime organizado − se cala, nada vê e nada ouve, o presidente do STF entra em campo e pratica o chamado “freio de arrumação”, ou seja, esfriar a própria apuração e postergar imputações.
A questão é relevante. Traz à baila uma antinomia que não se resolve facilmente.
De um lado, a proteção do indivíduo frente ao poder do Estado acusador; de outro, o interesse geral da sociedade em fazer valer leis que tutelam valores como a moralidade da administração pública, a higidez das ordens financeira e tributária, a repressão ao tráfico de drogas, o combate a organizações criminosas de toda natureza.
“Antinomia que não se resolve facilmente.
De um lado, a proteção do indivíduo
frente ao poder do Estado acusador;
de outro, o interesse geral da sociedade (…)”.
O ponto de equilíbrio precisa ser encontrado urgentemente. Dada a magnitude do tema, deve-se criticar a iniciativa do presidente do STF de decidir, cautelarmente, de forma monocrática, sobre algo que já vem gerando uma “quizomba” no exercício da função jurisdicional Brasil afora. Como ele próprio admite em sua decisão, uma vez reconhecida a repercussão geral da matéria, não estaria o relator obrigado a suspender todos os processos em curso, até manifestação do colegiado.
A lei confere-lhe a faculdade de fazê-lo ou não. Mas, sendo presidente da instituição e relator do processo, não teria sido mais adequado antecipar o julgamento da matéria, ora previsto para o dia 21 de novembro do corrente ano, dada a relevância da discussão?
Tudo isso posto, é forçoso reconhecer que os últimos acontecimentos apontam para um quadro de disfuncionalidade da prestação jurisdicional. Juízes e membros do Ministério Público vão se tornando objetos de comentários.
Veem-se em situações embaraçosas, por vezes nada lisonjeiras, que os obrigam a prestar esclarecimentos a todos os momentos. Estão na berlinda.
E isso coloca em xeque a própria produção do direito legítimo. Nós, brasileiros, que de uns anos para cá, passamos a incensá-los, em nome do “combate à corrupção”, deveríamos, nesse momento, nos debruçar sobre as reflexões de Habermas: “A aceitação de pretensões de validade, que cria fatos sociais e os perpetua, repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostas ao risco de serem desvalorizadas, através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que transformam o contexto”.
Resta saber se a desvalorização de pretensões de validade, em face a argumentos melhores e processos de aprendizagem, nos assegurarão, nessa altura do campeonato, a manutenção do Estado democrático de direito.
* Thales Chagas Machado Coelho é mestre em Direito Constitucional UFMG, professor de Pós-Graduação em Direito Eleitoral no Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN)