Incluo-me entre os insatisfeitos com a bipolarização social, ideológica e eleitoral diante do pleito de 2022. Pior, não consigo, infelizmente, ver no horizonte uma aglutinação de forças capazes de construir algo novo.
A ideia da inutilidade da terceira via não me parece senão de interesse dos dois candidatos na liderança da corrida até agora. Ambos apostam no tudo ou nada na polarização. Tenho dúvidas se Lula mantém-se mais forte que Bolsonaro para um segundo turno. Rearranjos partidários em curso, emendas e bilhões a serem injetados na campanha pelo governo. As torneiras abertas farão a diferença na reta final.
O risco é imenso de reeleição de Bolsonaro, caso não ocorra uma costura não muito óbvia e segura até agora, para superar particularismos, vaidades, regionalismos. E a máquina da desinformação continua viva formando mentalidades teleguiadas pela mentira e para a desintermediação favorável a líderes autoritários. Tudo em favor do atual presidente, apesar das pesquisas e sondagens de opinião. Elas apontam Lula na frente. Talvez. O problema é a chegada.
Lula sempre esteve acima do seu partido e mesmo de todos os partidos auto representados como de esquerda. É, queiram ou não, um dos maiores líderes da política brasileira. De volta ao cenário político já desponta como um forte candidato a presidente em 2022. O contexto geral é preocupante e o ex-presidente se coloca como uma alternativa, com chances de derrotar Bolsonaro e o que ele representa como parte de uma força em ascensão globalmente. Uma batalha muito parelha e difícil. Tudo dependerá de sutis jogadas no xadrez da política. Elas ainda se encontram abertas.
Todo o mundo registra uma tendência ultraconservadora e nela apresentam-se até projetos da extrema direita factoide. O “extemporâneo” se situa no contexto preciso da crise da democracia liberal e das fissuras no capitalismo dominante.
O desgaste de políticos é cada vez maior. A democracia e suas instituições encontram-se muito desacreditadas. Há um questionamento radical do Estado, das empresas, até das religiões, segundo Adam Przeworski (Crises da democracia). A corrupção é, ao lado da insegurança, o motivo maior da deslegitimação das instituições. Na Europa desde 2003 a noção de direita e esquerda tende a ser vista como obsoleta. A derrota de Trump indicou uma reação preliminar a esse movimento regressivo. Mas os ventos da barbárie sopram cada vez mais fortes.
Outras lideranças democráticas manifestam o desejo de desconstruir o governo atual. Mais uma vez Lula se apresenta como nome disponível em um conjunto de forças em defesa do estado de direito e da democracia constitucional. Nos anos oitenta credenciou-se com os melhores propósitos reformistas no sindicalismo e na política. A CUT e o PT de fato se insurgiram contra a corrupção em todas as suas formas (e colorações ideológicas). A CGT e o PCB pareciam não superar o peleguismo sindical e o oportunismo político.
Após três derrotas Lula chegou ao poder. Era 2002 e ele foi reeleito em 2006, deixando o segundo governo em 2010 com uma aprovação recorde de mais 83% dos brasileiros. Uma condição ímpar na história mundial. Mas tudo muda. A crise de 2008 (bolha imobiliária) minou a continuidade do Lulismo. Mas não somente.
Desde 2005 o escândalo do Mensalão revelou a corrupção nas hostes do PT e aliados. A direção e Lula negaram. Cinco tesoureiros foram presos com dezenas de milhões surrupiados. A Lava Jato recuperou perto de três bilhões oriundos de operações ilícitas sob o comando do partido autoproclamado como bastião da moralidade pública. E Lula logrou reerguer-se e está no jogo. As acusações envolvendo seu partido em vários esquemas ilícitos foram prejudicadas por processos viciados, beneficiando-o. Mas a mácula das falcatruas impregnou na imagem geral do lulopetismo.
Sérgio Sérvulo da Cunha diz que “todo mundo pode chamar alguém de ladrão, desde que tenha provas”. A mesma Operação Lava Jato que logrou desvendar os crimes dos governos Lula e Dilma, resvalou no arbítrio e no ilícito, comprometendo o necessário processo legal contra a corrupção. Lula foi preso mas os processos, todos, anulados por vícios evidentes. Moro e sua republiqueta deveriam estar na cadeia por seus crimes. Bolsonaro os salvou.
Agora para 2022 temos que vestir um véu da ignorância singular. Não se pode acusar Lula de ladrão nem todos os petistas de criminosos, mas de fato a pecha de corrupção marca o petismo. Em face do estorvo que é Bolsonaro, há que se medir com muito cuidado as candidaturas, “esquecendo” de muitos fatos para poder viabilizar uma oposição vitoriosa. Tarefa espinhosa. Nem todos tem a habilidade de deitar numa cama de pregos.
Eis alguns problemas. Se Lula por um lado é tomado por milhões como inocente, por outro há um caminhão de dinheiro (oriundo de falcatruas lulopetistas) retido nos cofres públicos. O fato gruda nas consciências de todos. Como devolver a cocaína? Indagava o acadêmico Joaquim Falcão, no caso de traficante inocentado. Lula não é ladrão mas os seus correligionários da alta direção financeira o são ou foram, objetivamente. Assim pensam os que conseguem dissociar o líder máximo da burocracia petista.
Situação curiosa e constrangedora é gerada no senso comum, tipo: “Lula é honesto mas sua a cúpula partidária é da propina” . E propina alta. O povão entendeu assim e a ladroagem das “esquerdas” passou a referenciar o cotidiano das pessoas comuns, com prejuízos irreversíveis aos movimentos progressistas igualitários. Ela é mais grave que aquelas comuns na “direita”. Afinal, o sonho (ilusão) pós-ditadura era a de um tempo novo, superando péssimas tradições e arcaísmos coloniais. Agora o problema é o como reunir uma oposição num contexto de tantos estilhaçamentos?
A terceira via é parte do impasse. Ela revela uma sinuca de bico. Dória tenta aliar-se ao ex-bolsonarista Moro e Lula ao ex-tucano Alckmin. Ciro, ensimesmado, não ultrapassa os dois dígitos. Outros candidatos são moedas podres para o escambo eleitoreiro.
Nesse quadro geral de candidatos na UTI, Lula pode ser uma alternativa, sob quatro difíceis exigências mínimas quase impossíveis:
a) uma autocrítica na qual fique bem claro que o seu projeto é parte de um acordo com o capital tentando salvar o mercado no qual os trabalhadores terão no máximo políticas de reparação de danos;
b) admitir que intenção de se aproximar do capitalismo produtivo, vale dizer, colocando limites ao canibalismo financeiro, é uma operação eivada de armadilhas na qual os trabalhadores podem ser as primeiras vítimas;
c) em termos internacionais nossa diplomacia deverá retornar ao pragmatismo histórico, sem alinhamentos ideológicos ao gosto de partidários do bolivarianismo ou ideológicos um fórum de São Paulo;
d) repudiar a corrupção, punindo-a com rigor, a começar por aquelas praticadas por seus correligionários.
Sem ilusões, Lula redefinido pode ser a oportunidade para o avanço da democracia. Avanço não nas lutas socialistas, esgarçadas desde o nocivo transformismo de seus governos, mas como pedra no sapato da ultradireita no poder. Bolsonaro passa. O bolsonarismo permanece. Avanço não do projeto emancipatório sonhado pelas esquerdas, mas do folego necessário para frear os ímpetos protofascistas em curso no Brasil, e no mundo. Já é um avanço. Mas não basta por si só.
A revolução hoje reduziu-se à retirada do poder de líderes autoritários em vários governos mundo afora. Nesse sentido há se renovar o véu da ignorância, ou tapar os olhos ao passado e apostar, mais uma vez, no que temos de menos pior para um novo reinício. Reinício não se sabe para que e para onde, mas se sabe onde não queremos permanecer.
O contorcionismo de Lula é uma qualidade. Capaz de se acomodar-se numa cama de pregos. O ex-presidente pretende não repetir erros que lhe custaram muito caro em termos pessoais e na sua imagem pública. 2022 significa para o líder petista, sobretudo, uma restauração do seu tempo de muito prestígio e respeito internacional, chamuscados.
Há muito a ocorrer antes das eleições. Forças progressistas inclinam-se por Lula como um Santo ou mal menor. Outras por uma terceira via de cartas marcadas ou não. Via com viabilidade, eis o nó górdio. Quem? Quais grupos de interesses? Haverá capacidade de Lula em ceder, caso precise for, para compor e unir o que já larga fracionado?
Resta saber também se as classes mais carentes de direitos será beneficiada a médio prazo nesse projeto ao ponto de superar as lutas contra as desigualdades, sem esquecer de avançar na luta por igualdade (terreno da utopia). Aí reside um problemão para o futuro que não se quer repetir.