Hora de sacrifício do andar de cima

Os cenários previstos, diante da crise sanitária provocada pelo coronavírus, incluem desemprego, falências e fome. A fatia de brasileiros que já estavam em situação de vulnerabilidade vai aumentar. Enquanto isto, o funcionalismo vai continuar recebendo salários altos e muitas mordomias. Isto é justo? Ou este estamento privilegiado, bancado com dinheiro de impostos, deve contribuir para mitigar o sofrimento dos menos favorecidos?

Funcionários da administração pública federal, em Brasília - Foto: Orlando Brito

Períodos de crises graves e perturbadoras, como este que o mundo inteiro está enfrentando com a ameaça da covid-19, podem mostrar o melhor e o pior de cada indivíduo. Também podem ser momentos de transformações.

A Europa, com a decisiva ajuda dos EUA, renasceu da devastação causada pela Segunda Grande Guerra, e criou o Estado do Bem-Estar Social. À exceção dos países que ficaram confinados atrás da Cortina de Ferro, as nações europeias experimentaram um longo período de melhoria na qualidade de vida.

Winston Churchill, o líder obscurecido pelo fracasso militar durante a Primeira Grande Guerra, revelou-se decisivo. Sem ele, as potências do Eixo talvez não tivessem sido derrotadas.

Ainda não sabemos a dimensão da atual crise. Os remédios para enfrentá-la estão sendo debatidos.

É indiscutível, no entanto, que imensos sacrifícios serão exigidos de todos. O Governo Federal já anunciou desembolsos de R$ 750 bilhões, o que vai dificultar tremendamente o ajuste fiscal que a equipe econômica vinha conduzindo com sucesso.

Winston Churchill, o mandatário britânico durante a Segunda Grande Guerra

As autoridades econômicas acertaram, pois o momento é de mitigar os efeitos econômicos devastadores que advirão da crise sanitária. Sobretudo dos que mais vão sofrer – pobres, miseráveis, desempregados, trabalhadores informais, autônomos e microempresários.

A necessária ajuda a este grupo já está sendo providenciada. Um dos custos destes bilhões de reais que a União não tem, mas vai desembolsar, é o aumento exponencial da dívida pública.

Hora de contribuir

Parte deste prejuízo precisará ser absorvido pelo erário, com mais dívida – o que significa dizer que será pago mais adiante por todos nós, na forma de mais impostos. Mas uma parte deste sacrifício pode – e deve – vir de quem tem mais.

Os empresários que tiverem condições devem evitar demitir. Os bancos devem reduzir seus lucros em favor dos tomadores de empréstimo.

Ao mesmo tempo, um setor expressivo da máquina pública deve participar do sacrifício coletivo. Refiro-me aos servidores públicos.

Este estamento, bastante privilegiado, pode ganhar um pouco menos para que o imenso grupo dos desfavorecidos receba um pouco mais. Há, aí, dois aspectos embutidos, um moral e outro financeiro.

Em termos morais, a iniciativa deveria partir do funcionalismo. Parece evidente que não faz o menor sentido manter salários e penduricalhos altíssimos, mesmo para os padrões de países desenvolvidos, enquanto milhões de brasileiros terão dificuldade para comprar comida e remédios, ou pagar as contas de luz e água.

Com a palavra, os três poderes

Como este mundo ideal não existe, cabe aos três poderes da República se unirem. Representantes do Executivo, do Judiciário e do Legislativo devem se reunir imediatamente para decidir o tamanho do sacrifício de cada um.

A palavra sacrifício, aliás, é inapropriada. O termo certo é contribuição.

Por quê? Porque, ao contrário dos trabalhadores, o funcionalismo não vai perder seu emprego, vai continuar a receber bons salários e preservar o tranquilizador direito à aposentadoria.

O quadro de servidores, porém, não pode ser visto de maneira uniforme. Há servidores que recebem baixas remunerações.

Além disso, setores como o da saúde e segurança vão trabalhar mais do que os demais. Justo que eles tenham tratamento diferente.

Bilhões para investir

Mas que tal estabelecer uma linha de corte? Para começar é possível determinar que nenhum servidor receberá mais do que o teto remuneratório de R$ 39,2 mil mensais – que, por si só, já é indecente.

Podemos avançar e acabar com todos os penduricalhos. Apenas em auxílio-moradia seria possível economizar R$ 4,7 bilhões, e outros R$ 10 bilhões com a parte dos supersalários que excede o teto constitucional.

Ninguém vai passar fome ou ser despejado se não dispuser do auxílio-moradia, por exemplo. Obviamente, estes cortes devem atingir a cúpula dos três poderes, como os parlamentares, ministros de Estado e integrantes de tribunais.

É o caso dos fundos partidário e eleitoral. Juntos, somam cerca R$ 3 bilhões.

Se adotarmos estas medidas, justas e solidárias, não estaremos sozinhos. O presidente do Uruguai, Lacalle Pou, anunciou cortes nos vencimentos da cúpula do governo e dos servidores públicos para formar o Fundo Coronavírus.

Justo e desenvolvido

Há duas formas de encarar este momento. De maneira egoísta e de maneira solidária.

Nunca seremos uma nação justa enquanto a iníqua diferença entre teto e piso salarial for tão gritante. Mais escandaloso, ainda, é sabermos que o topo da pirâmide de salários é custeado com dinheiro público.

Portanto, não há que falar em sacrifício, mas solidariedade.

Sacrifício fazem os pequenos empresários, que terão que demitir. De sacrifício padecem os pobres e miseráveis, que não terão o que comer. Desesperador é o que viverão os trabalhadores informais, os autônomos e os desempregados, sem renda.

Diante deste quadro gravíssimo, melhor seria que quem tem mais cedesse espontaneamente parte de seus ganhos. Ou, pelo menos, sem resistência.

Se isto parece utópico, cabe às cúpulas dos três poderes decidir urgentemente uma forma de minimizar as perdas da imensa maioria dos brasileiros. Talvez seja este o momento histórico para que o Brasil deixe de ser uma nação injusta e em desenvolvimento e se torne um país justo e desenvolvido.

* Mateus Bandeira foi CEO da Falconi, presidente do Banrisul e secretário de Planejamento do RS

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