Guardem esta data. Treze de fevereiro de 2022.
A possibilidade de Bolsonaro ganhar as eleições, ao contrário do que anunciam seus desafetos, é bem maior do que as possibilidades de Lula.
Não entrarei na querela sobre as pesquisas unanimamente indicativas do favoritismo do ex-presidente (45% contra 23% do presidente) e a rejeição a Bolsonaro (55%). Elenco algumas observações aleatórias. Elas podem servir para verificar o que um Brasil profundo talvez revele, para além de critérios estatísticos de aferição de tendências.
Essa profundidade acima referida nada tem a ver com erudição ou qualquer postura superior, tampouco com a defesa da razão. Indica o mundo da percepção e da emoção incrustadas em parcelas consideráveis da consciência coletiva. Trata-se em sua mediana, malgrado e graças ao incremento da confusão cognitiva que atravessam o Comum.
Por outro lado, sabe-se que a construção de instrumentos de mensuração quantitativa não se liberta do ambiente passional um tanto caótico em que se situa, tampouco paira no ar, alicerçada numa crença absoluta na neutralidade científica. A margem de erro de hoje (de 5% com base em dois mil entrevistados) pode ser fidedigna mas o quadro está movediço e completamente indefinido a cada dia.
O sensitivo mencionado acima diz respeito à apreensão primeira do entorno (ou do território) no qual indivíduos se inserem e a partir dos quais seguem-se muitas racionalizações distanciadas de critérios racionais. O primitivo conduz o processo social em momentos de traumas e regressões. Jamais esquecer esse detalhe.
Acresça-se ao quadro da biruta social que os ventos devem mudar muito nos próximos meses. De todo modo há alguns elementos básicos para a análise contra fática, ou em choque com a corrente do óbvio, a do Lula já ganhou.
A nossa condição conservadora é um desses ingredientes culturais. Há muitos outros a considerar, a exemplo do troca-troca e das prendas da herança patrimonialista. Os bilhões do fundo eleitoral apontam para um dos vetores importantes nas coligações do primeiro e segundo turnos. As torneiras a serem abertas pelo governo federal vão ser destinadas à cooptação e desinformação. Nesse contexto de dúvidas e na guerra de narrativas, opta-se majoritariamente por manter quem já está no poder.
É improvável e inverificável atribuir à classe média comportamentos conservadores e à sua compulsão por uma centralidade venal. A condição de medo atinge grande parte da pirâmide social, amargurada com a onda de desgaste da politica. Querem mudanças na vida para melhor mas suspeitam de tudo que o significante socialismo invoca, graças a uma sucessão de falcatruas nos governos petistas. Daí o inimigo maior de Lula, a rejeição ( por volta de 38%).
Considerem os leitores os períodos de sufoco da parte daqueles que pressentem os tempos inseguros: as classes subalternas, sobretudo, e amplos setores sociais socorrem-se, por razões distintas, naquilo que tomam como novo. Lula e Bolsonaro, cada um ao seu modo expressaram em 2002 e 2018 uma revolta com o status. Eram a novidade.
Lula fez e faz parte desse clube de protagonistas da política há quatro décadas. Bolsonaro saiu de uma inexpressiva e medíocre atuação parlamentar, desacreditado candidato em 2018, para a conquista da presidência. A vitória expressiva e inesperada e contra todas as projeções, sobre Haddad, deve ser lembrada em face das pesquisas de opinião.
Hoje Lula não diz respeito a novidade alguma. É proprietário de um grande feudo político de 25 milhões de eleitores. Bolsonaro, enfraquecido, bem da verdade, quer queira ou não a elite universitária, ainda permanece como NOVIDADE, mesmo se chamuscado por críticas e resultados abaixo do esperado.
A mediana do senso comum consome e legitima um conjunto de tópicos argumentivos resultantes da má informação, bem entendido, mas confluentes com uma pré-compreensão geral já arraigada culturalmente em todo o tecido social: a de esgotamento do blá, blá, blá de políticos desprovidos de vergonha moral e a sensação de que a desordem atribuída à má política tradicional tumultua o abrigo de seus redutos mais íntimos, dos costumes e das tradições.
Na campanha de Bolsonaro será recorrente a retórica segundo a qual não há evidências de corrupção no seu governo nesses mais de três anos. A CPI da COVID gastou uma energia imensa e já se sabe que são poucas as suas chances de responsabilizar culpados pela política sanitária na pandemia. Também não cola no eleitor comum as acusações atribuídas a Bolsonaro de descaso e incentivo à não vacinação.
O governo explicita com meias verdades efetivas que não se pode obrigar as pessoas a se vacinar e que a vacinação vem ocorrendo. Também não emplacam fora dos meios urbanos as denúncias de destruição do meio ambiente e o desrespeito aos povos indígenas. O Brasil profundo está aquém das questões de gênero e de certa maneira compram a simplificação delas operada pela ultradireita em face de certas bobagens no encaminhamento das mesmas pela esquerda, como parece ser o caso dos ensaios de todes, ou criação de pronomes para os indivíduos do grupo de pertinência ao denominado LGBTQUIplus.
Com relação à queimadas e grilagens oficiais de terras indígenas, Bolsonaro insiste na necessidade de seguir curso de muitos países desenvolvidos, não negando mas explorando o meio ambiente para gerar riqueza, alimentos, empregos. O povão engole essa manga acriticamente.
Quanto a homofobia, Bolsonaro vai dissolvendo suas posturas preconceituosas do passado com competente exibição do crescente público identitário que o apoia. Sempre bom lembrar que os identitários expressam em boa medida uma visão pós-moderna na na qual os metarrelatos ou grandes discursos (com suas vanguardas heroicas) não possuem mais uma capacidade de unir indivíduos e grupos como no século XX.
Para milhões de eleitores mais ilustrados a China é nossa inimiga e os EUA o menos pior dos aliados. Bolsonaro vem driblando todas aquelas suas condutas equivocadas, cozinhando em banho maria até o notório elogio a torturadores.
A ideia de federação partidária parece interessante para tentar superar polarizações (reais e falseadas), aglutinando forças políticas com propósitos comuns já para o primeiro turno, enfraquecendo os extremos. Poderá também ajudar na definição de encaminhamentos conectados com as demandas sociais e mais urgentes com os interesses de mercado comprometidos com a ideia de economia como ciência moral (Amartya Sen).
Somente esse esforço poderá redefinir o Comum e reorientá-lo para vencer Bolsonaro. Se isso não acontecer Bolsonaro tenderá a ganhar as eleições. As cisões no PSDB, PDT, PSB, e em quase todas as agremiações progressistas indicam problemas para concretizar uma federação capaz de requalificar as forças oposicionistas e mesmo bolsonaristas. Nesse caso o líder que oferta o populismo mais apropriado à não interlocuções é Bolsonaro, líder no qual milhões de brasileiros estarão dispostos a hipotecar a democracia liberal em favor de um governo autoritário no qual acreditam restar alguma alternativa para superar o caos institucional.