Covaxin: mais secreta que a Coca-Cola?

O autor, conhecedor das leis no Brasil e nos EUA, questiona por que o governo brasileiro, admirador dos norte-americanos, fugiu da compra das vacinas produzidas por laboratórios daquela nação da América do Norte. Seria por que lá as leis não permitiriam o que supostamente se passou na compra da indiana Covaxin?

A Constituição Federal é clara ao dizer que cabe ao Congresso Nacional algo mais que fazer leis. Compete-lhe, ainda, fiscalizar os atos do Poder Executivo. Nesse sentido, o art. 49 da Lei Maior não poderia ser mais explícito. Para não ser cansativo, cito apenas o inciso X desse dispositivo: “X – fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta”. Isso é da essência do esquema de freios e contrapesos – “checks and balances” –, próprio do sistema presidencialista de governo. O presidente da República − sabemos muito bem – torce o nariz para a ideia de “equipotência de poderes”, expressão usada, com frequência, pelo Senador Marco Maciel, já falecido.  Mas, enquanto estivermos sob a égide de uma Constituição, é assim que deve ser.

Não se pode admitir, portanto, que o governo impeça a CPI da Pandemia/Covid de ter acesso ao contrato firmado pela Precisa Medicamentos e o laboratório indiano Bharat BioTech. Já há evidências, à saciedade, desde o gol de placa da Senadora Simone Tebet (MDB-MS), ao revelar a fajutice das faturas (invoices) na compra da vacina Covaxin, que ali nada se sustenta como regular. Mas é necessário conhecer os exatos termos das tratativas e quem delas, afinal, se beneficiaria.

É da natureza da fiscalização e do controle legislativos poder tomar conhecimento de atos eventualmente irregulares e apontar aqueles que por eles devam responder administrativa, civil e penalmente. E a CPI da Pandemia/Covid, nos termos do art. 58, § 3º, da Constituição Federal, é meio idôneo para o Congresso Nacional  ter acesso ao referido documento, dotada que é de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.

No entanto, sobre o tal contrato paira um manto de sigilo institucional, decretado pelo Poder Executivo, que é injustificável. Permanece guardado a sete chaves, mais protegido que a famosa fórmula de certos ingredientes do xarope da Coca-Cola, como se o segredo ali fosse imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Na verdade, parece ser imprescindível para resguardar a impunidade. E diga-se que nem autoridades indianas têm colaborado para que os fatos sejam esclarecidos.

Se toda essa encenação não nos permite conhecer os meandros das negociações envolvendo a compra do imunizante Covaxin (compra abortada aos 45 minutos do segundo tempo, por forças alheias à vontade do governo), autoriza-nos, no entanto, a levantar, no campo das hipóteses, motivos pelos quais o Poder Executivo teria evitado, no momento oportuno, comprar vacinas eficazes, produzidas pelos laboratórios Pfizer e Johnson & Johnson, duas das maiores farmacêuticas do mundo.

As duas “big pharmas” citadas são empresas norte-americanas. Como o presidente da República se apresenta como um trovador do amor incondicional aos EUA, não seria razoável que procurasse vacinas por lá, caso não colasse, como não colou,  a teoria de imunidade de rebanho, por disseminação ampla, geral e irrestrita do coronavírus? Por que não o fez?

O que levaria um governo, que desdenhou a pandemia, a, de um lado, negar, reiteradamente, ofertas de empresas conceituadas (que, apesar da dominância de mercado na produção de vacinas, propuseram-se a disponibilizar seus imunizantes a preços e condições razoáveis) e, de outro, sair correndo, em disparada, atrás de uma vacina de eficácia duvidosa, vendida a preços estratosféricos, nos termos de um contrato (secreto) entabulado a toque de caixa, envolvendo, na transação, o mais alto escalão de autoridades governamentais, no Brasil e na Índia, e sem certeza de entrega do produto no prazo, como, aliás, se deu no vizinho Paraguai?

Ocorre que havia uma pedra no meio do caminho. E essa pedra chama-se império da lei, ou, como gostam, orgulhosamente, de proclamar os norte-americanos, “the rule of law”. E, no âmbito do império da lei, haveria uma pedra no sapato de vultosas contratações que dissessem respeito à aquisição, pelo governo brasileiro, de vacinas produzidas por empresas sujeitas às leis dos EUA. No caso, especificamente, duas leis sobre contratos internacionais de compra e venda de produtos ou prestação de serviços; dois escudos de proteção da moralidade administrativa e da lealdade na concorrência: a “Foreign Corruption Practices Act” (1977) e a “Sarbannes Oxley Act” (2002). Considerado o escrutínio dessas transações pelo FBI e pela US Securities and Exchange Commission (SEC) − a poderosa agência reguladora do mercado de ações −, à luz dessas leis draconianas, é possível afirmar que falcatrua alguma teria espaço nas negociações diretas entre esses laboratórios e o governo brasileiro.

Assim, podemos imaginar, e até agora, só imaginar, pois o contrato é “segredo de Estado”, por que os responsáveis por tenebrosas transações buscaram fugir da aquisição de vacinas norte-americanas como o diabo foge da cruz e por que precisam esconder o que andaram fazendo do outro lado do mundo.

  • Advogado, Mestre em Direito Constitucional (UFMG)
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