Cavernas, mitos, ogros e outras titicas

Na arqueologia universal da infâmia o Brasil padece na mais tenebrosa sarjeta da indigência. Ao libertar o socrático “mito da caverna”, ardemos nas labaredas da estupidez, na vertigem genocida da idiotia e na renúncia da capacidade regeneradora da verdade. O flagelo deve ser atribuído à desinibição dos obtusos, ensejada pela entronização de um deles. Os trogloditas das cavernas, suas crenças e distorções, sempre existiram, mas envergonhavam-se em suas limitações e resignavam-se em tatear sombras disformes. Agora têm um mito, manufaturado na sombra inquisitorial de Torquemadas, que os resgatou da gruta, amplificou o zurrar da bestialidade e entoa um réquiem civilizatório.

“Abaixo a inteligência! Viva a morte!”, grunhiam os mitômanos franquistas no início do século XX no santuário da Universidade de Salamanca. Faziam gestos de armas com as mãos, celebravam a liberação de armamentos e o corte de verbas da universidade e das bolsas de mestrado e doutorado. O ódio à inteligência, o culto à morte, à intolerância e a banalização da barbárie são os amálgamas que roçam todas as ciladas obscurantistas do atual governo. Se prestam a ativar permanentemente seu insipiente e colérico nicho. A seita encoraja o atraso, sabota o conhecimento, a ciência, a educação, a cultura e a própria política através do confronto.

A alegoria de Sócrates antagoniza civilização e barbárie, luz e trevas, conhecimento e ignorância, bem e mal, ciência e crença, verdade e mentira. Essa dicotomia nunca foi tão sombria desde o fascismo, o franquismo e o nazismo. Bolsonaro age como um espécime das cavernas. Anacrônico, incorporou o selvagem hidrófobo empunhando o porrete e vocalizando crenças flatulentas. Está rodeado de ogros rangendo a esmo seus instintos primitivos. São quase acéfalos. O sucessor do Neandertal das cavernas foi o homo sapiens. Os progressos foram significativos: evolução do cérebro e capacidade de raciocínio, comunicação e inteligência.

Jair Bolsonaro – Foto Orlando Brito

Jair Bolsonaro é o crepúsculo da espécie. É o antípoda da ciência, insulta a educação, escarnece da verdade, orgulha-se da insciência, despreza a vida e os avanços civilizatórios. Sua necrofilia rudimentar e insidiosa nos desonra diariamente perante o mundo. O negacionismo é mera covardia, intrínseco à ignorância. É mais tático recusar do que contraditar conteúdos que se ignora. Prescreveu medicamentos ineficazes, zombou da vida e, agora, rechaça a vacina chinesa por uma diarreia ideológica. Os descendentes e aliados herdarão a vergonha e a marca da infâmia. O futuro é inevitável e impiedoso.

O repertório de disparates é inesgotável. Fora o STF, Bolsonaro comanda a deterioração. Nos últimos dias o Brasil assistiu, aturdido, a uma fuga em massa de espectros dos subterrâneos mais arcaicos. Não estamos testemunhando o corriqueiro dissenso político ou ideológico, mas corrosões civilizatórias inegociáveis. A Corte brasileira dispendeu dois valiosos dias, bancados pelo contribuinte que não vive nas cafuas, para decidir que um traficante, solto por uma liminar de um dos ministros, deveria seguir atrás das grades, no fundo da catacumba. O problema agora é localizá-lo e trancafiá-lo novamente.

Chico Rodrigues e sua versão sobre o fato

Em outra evocação, característica das cavidades mais nauseabundas, o vice-líder de Jair Bolsonaro, Senador Francisco Rodrigues, que trombeteia imposturas éticas em público, foi pilhado em sua cripta com mais de R$ 30 mil escondidos próximos ao orifício. A versão dada pelos defensores não seria aceita nem no hospício. Isso na semana que o capitão havia editado o fim da corrupção. Em uma encenação montada na escuridão do covil, o senador homiziou-se no mais profundo breu de um buraco e espera ser protegido pela escuridão da caverna nos próximos 4 meses. A licença do mandato é o artifício para cobrir o aliado de Bolsonaro com o véu da impunidade.

O jogador de futebol, Robinho, com passagens por times europeus, foi condenado na Itália por estupro. Os diálogos que embasaram a sentença expõem excreções inumanas. Recontratado pelo Santos, cujo símbolo é o peixe, disparou asneiras e morreu pela boca. Vendo-se acuado e com contrato desfeito, revelou seu mentor, Jair Bolsonaro. O mesmo que foi condenado a se retratar e a indenizar a deputada Maria do Rosário pela cavernosa frase: “É muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”.

Em uma das insanidades a besta-fera atacou o portador da notícia com poeiras religiosas: “A gente sabe como a TV Globo é uma emissora do demônio. É só você ver as novelas, as programações. Então eu estou em paz. Que se cumpra o propósito de Deus na minha vida. Meter gol neles. Vou meter uma camisa quando fizer gol: Globo lixo, Bolsonaro tem razão”. Não explicou, entre outras coisas, o papel da Globo, do demônio ou do feminismo na condenação.

O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, tem o desafio de apagar o fogo de proporções amazônicas – Foto: Orlando Brito

Evocando as trevas mais fúnebres, responsáveis por mortes, torturas, exílios e desaparecimentos, o vice Hamilton Mourão elogiou Carlos Alberto Brilhante Ustra: “Ustra foi meu comandante no final dos anos 70 do século passado, e era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”. O honrado Ustra foi o primeiro oficial da ditadura a ser condenado por sequestro e tortura no período que comandou o sanguinário Doi-Codi. Ao votar no impeachment de Dilma Roussef, Bolsonaro também enalteceu o facínora.

A impunidade no Brasil, tramada nas cavidades peçonhentas, contrasta com a censura à atleta do vôlei, Carol Solberg. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Vôlei julgou a atleta por ter gritado “Fora, Bolsonaro”, à luz do sol, após conquistar a medalha de bronze na primeira etapa do Circuito Brasileiro de vôlei de praia. O caso lembra as olimpíadas do México, quando dois atletas negros protestaram contra a discriminação e sofreram represálias. A esdrúxula punição à atleta brasileira rasga um dos alicerces da democracia, a liberdade de expressão. Ela se soma à censura prévia da Justiça contra órgãos de imprensa e jornalistas.

O obscurantismo no governo é desinibido e jactante. O general Eduardo Pazuello ostenta as estrelas mais opacas da esplanada. Sob sua gestão sem brilho, o Brasil atingiu um dos mais vergonhosos índices de óbitos da Covid 19 e estocou um remédio inútil para pandemia para 18 anos. Além das derrapadas sobre clima, também confessou sua ignorância histórica: “Nasci em 1963, não sei nem o que é AI-5”. Agora ele encorpou o currículo do orgulho tosco: “Eu nem sabia nem o que era SUS”, disse em outubro. O chefe da Saúde foi humilhado pelo capitão no veto à vacina chinesa. Bolsonaro segue enodoando as Forças Armadas em troca de alguns cobres.

A celebração da obtusidade é ilimitada. É um programa de milhagem para bonificar os mais toscos. Abraham Weintraub, o brucutu evadido, foi premiado com cargo no exterior, alto salário, por encorajar a ignorância. Não sabia escrever. A ministra da Agricultura também resolveu se arriscar ao citar o boi bombeiro. “Mas, o boi, ele ajuda. Ele é o bombeiro do pantanal” disse incendiando a audiência da Comissão do Senado que acompanha as ações de enfrentamento aos incêndios no Pantanal. Conversa para boi dormir, sem amparo científico.

O ministro Paulo Guedes, da Economia – Foto: Orlando Brito

O ministro Paulo Guedes animou o “festival de besteira que assola o país”, do memorável Sérgio Porto. Guedes expressou a investidores, insistindo na visão limitada dos habitantes das cavernas na defesa da CPMF: “Enquanto as pessoas não vierem com uma solução melhor, eu prefiro esse imposto de merda”. O descompromisso, terceirizando responsabilidades, assombra mais do que a escatologia, abodegada pela coloquialidade vulgar equivalente às “hemorroidas” presidenciais e cofrinhos de seus vice-líderes.

A empulhação da nova política nos amaldiçoou a retroceder à idade média, às ruínas, às moléstias, ao obscurantismo, à irracionalidade e aos odores pestilentos. Como no Iluminismo, é preciso dissipar a névoa antes que os olhos se habituem à cerração. Enquanto não vierem soluções melhores purgamos nessa titica. É irrecusável a lembrança de Gabriel Garcia Márquez, que condensou as hipocrisias políticas e a penúria social em “Ninguém escreve ao Coronel”. Desesperada com a miséria, depois de anos de espera por uma pensão do governo que nunca veio, a mulher diz ao Coronel, protagonista da obra:

“Diz lá, o que vamos comer”

“O coronel precisou de setenta e cinco anos – os setenta e cinco anos da sua vida, minuto a minuto – para chegar a este instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder:”
“Merda!”

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